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Tudo sobre a “fraude” na Venezuela, nada sobre o genocídio em Gaza

Presidente da Venzuela, Nicolas Maduro, em 22 de outubro de 2023 [Alfredo Estrella/AFP via Getty Images]

O Jornal Nacional talvez seja a principal fonte de informação dos brasileiros, mesmo diante do aumento no número de consumidores de notícias em aplicativos, redes sociais e na Internet. Visto diariamente em 38,1% dos lares com televisores ligados na região metropolitana de São Paulo, é o mais importante telejornal da TV Globo que, por sua vez, é assistida por 70 milhões de brasileiros diariamente. Logo, um número expressivo de cidadãos forma a sua consciência sobre os acontecimentos nacionais e mundiais a partir do que é veiculado por esse programa.

O JN demorou nove dias e oito edições para dar o mesmo destaque, em termos de tempo de cobertura, ao genocídio de Israel contra os palestinos em Gaza do que deu à alegada fraude eleitoral na Venezuela em apenas um dia.

As eleições presidenciais venezuelanas, cujo vencedor oficial foi Nicolás Maduro, e cujo resultado o principal candidato opositor, Edmundo González Urrutia, não aceitou, ocorreram no domingo, 28 de julho.

No dia seguinte, a primeira edição do JN pós-eleição venezuelana concedeu incríveis 25 minutos e 38 segundos à cobertura. A esmagadora maioria desse tempo foi dedicada a promover a tese de fraude, criada pela oposição e repercutida automática e acriticamente pelo monopólio de agências de notícias formado por AP, Reuters e AFP, que distribuem toda a base para o conteúdo reproduzido por todos os principais meios de comunicação do Ocidente.

Como tem sido costume há mais de 20 anos, a linha editorial da Rede Globo é radicalmente antichavista, e não somente em seu conteúdo opinativo, mas também no alegadamente informativo é composto quase que exclusivamente de material negativo sobre o governo venezuelano. Assim tem sido a cobertura da atual crise política em meio às conturbadas eleições no país vizinho.

Já nos dias imediatamente anteriores à eleição, o JN havia veiculado conteúdos que reproduziam o discurso da oposição a Maduro e sem situar o público a respeito da cena política, econômica e social da Venezuela. No dia 26, foram 2 minutos e 24 segundos dedicados ao assunto, e 6 minutos e 42 segundos foram destinados ao tema no dia seguinte – sempre comprando o discurso opositor, que já era uma preparação para o não reconhecimento da derrota, por muitos previamente apontado que era o resultado mais provável.

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No dia 30, o JN destinou 12 minutos e 52 segundos à situação na Venezuela, enfatizando as acusações de fraude e o mito do “isolamento” do governo Maduro diante da “comunidade internacional” – que se resume a EUA, União Europeia e alguns governos aliados da América Latina, os menos importantes, inclusive.

Para se ter uma ideia, no dia 7 de outubro de 2023, início da operação Tempestade de al-Aqsa, quando, até o início do programa, haviam morrido 250 israelenses resultantes da operação militar palestina e 232 palestinos em Gaza vítimas da nova matança israelense, o JN dedicou míseros 35 segundos à invasão de Israel a Gaza – e 25 minutos ao “terrorismo” do Hamas.

Na edição seguinte, a de segunda-feira (09), foram apenas 54 segundos destinados aos ataques de Israel a Gaza. O JN precisou de 8 edições para dedicar um tempo semelhante aos ataques de Israel a Gaza – quando já eram 2.800 as vítimas palestinas – do que dedicou em apenas um dia de cobertura sobre o resultado das eleições na Venezuela (12 minutos e 27 segundos no acumulado das 8 primeiras edições sobre Gaza contra 12 minutos e 46 segundos na primeira edição pós-eleição venezuelana).

A comparação nesses dois casos específicos é simbólica para demonstrar o caráter da cobertura da Rede Globo, de um modo geral, sobre os acontecimentos políticos internacionais. Essas duas mensurações também comprovam as afirmações de que a linha editorial da Rede Globo é exatamente a mesma que a linha política dos EUA. Isto é, os temas nos quais o governo dos EUA tem uma política favorável – como acusar o governo venezuelano, que é rival do estadunidense, de cometer fraude e insuflar uma mudança de regime – são tratados extensivamente no noticiário da Globo. Além disso, o conteúdo desse noticiário segue a linha política do governo dos EUA (como enfatizar a suposta fraude na Venezuela e a pretensa ilegitimidade de um governo rival do governo estadunidense).

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Já os temas em que os EUA têm desacordo, até mesmo de que sejam tratados, – o genocídio em Gaza, por exemplo – simplesmente são secundarizados (quando não completamente ocultados). O governo estadunidense é o principal sustentáculo do regime israelense desde que ele foi criado. É quem fornece as armas, equipamentos, treinamento e dinheiro usados por Israel para assassinar palestinos. Por isso Washington nunca reconheceu que existe um genocídio em curso desde o 7 de outubro, apesar de ser indagado inúmeras vezes a respeito e confrontado com provas volumosas desse genocídio. Logo, a cobertura da Rede Globo também nega o genocídio, e para isso é fundamental que ele não seja devidamente noticiado ou retratado. Pelo contrário, em geral os palestinos devem ser retratados como os responsáveis pelo seu próprio sofrimento, particularmente devido à atuação do Hamas e dos demais grupos da resistência armada, ou mesmo política.

Mas a Rede Globo não é uma exceção no universo comunicativo e jornalístico, seja o brasileiro ou o ocidental ou sob sua hegemonia em outros lugares do mundo. Por ser o país mais rico e, portanto, mais poderoso do mundo nos últimos cem anos, os EUA são donos de um regime imperialista que submeteu a maioria das nações do planeta nas últimas décadas. Logo, o seu aparato de comunicação de massa atende aos interesses desse regime – e precisa atender a esses interesses, porque é fundamental para a manutenção de seu domínio. Mesmo não sendo estatais, as empresas de comunicação pertencem a conglomerados que fazem parte do regime estadunidense e que, portanto, têm interesse direto e total em defendê-lo. Com o controle sobre a economia, a política e mesmo outras áreas da sociedade de diversos países do mundo, particularmente na América, na Europa e na África, o regime estadunidense também conquistou o controle sobre os principais meios de comunicação desses países, submetidos ao poderio econômico dos seus patrocinadores (empresas dos EUA ou ligadas ao seu mercado) e à pressão política de suas elites, controladas e dependentes dos EUA. Assim, o formato e o conteúdo político-ideológico exibidos pelos principais veículos de comunicação nesses países, com raríssimas exceções, é praticamente o mesmo.

Portanto, é por isso que vemos no JN basicamente as mesmas notícias sobre política internacional, com a mesma linha editorial, que vemos na CNN estadunidense ou na BBC britânica. E, como é exatamente o caso da Rede Globo, esse noticiário atende a interesses contrários aos do país onde o veículo é sediado, pois é oprimido e explorado pelo imperialismo dos EUA. Essa é a razão pela qual muitos dizem que a Rede Globo sequer é brasileira. Outro motivo é a própria origem da Rede Globo, criada com capital estadunidense e fora da lei brasileira, desenvolvida com know-how, técnicos, equipamentos e especialistas estadunidenses ligados ao establishment dos EUA e financiada e estruturada por uma ditadura militar instalada pela Casa Branca.

Logo, é absolutamente natural que a Rede Globo atue, na prática, como uma máquina de propaganda dos EUA. Porque é isso que ela é.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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