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A história do emir argelino Abdelkader: um antídoto ao extremismo

Retrato de Abdelkader el-Jazairi, líder militar e religioso argelino que comandou a luta contra a invasão colonial francesa em meados do século XIX [Wikipedia]

O documentário Abd El Kader, do cineasta argelino Salem Brahimi, lançado em 2014, é, quem sabe, o melhor antídoto às tentações do Daesh — grupo terrorista conhecido no Ocidente como Estado Islâmico. A obra é baseada na vida do emir Abdelkader al-Jazairi (Ibn Muhieddine, 1808–83), cuja história se mostra repleta de temas contemporâneos, como o Islã político, insurreições árabes e coexistência religiosa.

Abdelkader é um líder pouco conhecido, porém importantíssimo na história argelina — um herói nacional para o povo da Argélia e um personagem orientalista para a França. Abdelkader foi um pioneiro e inspirou a luta anticolonial e a Guerra da Independência da Argélia. Comumente retratado envolto em vestes brancas, seus ensaios espirituais ressoaram no coração de muitas pessoas.

Segundo Brahimi, se os argelinos pouco o conhecem, é porque sua vida não é ensinada nas escolas, apesar de ter exercido um papel fundamental na deposição da colonização francesa no país norte-africano. “Há ainda alguns críticos que acusam o emir de ser um traidor, por assinar acordos com a França”, comentou Brahimi. “Mas não penso que é o caso. Ele lutou por 17 anos contra o que era o maior exército do mundo na época, que impunha uma política de terra arrasada e muitos outros crimes de guerra”.

O que é interessante, segundo o diretor, é que o emir foi um líder militar e um sufista, que interpretava a guerra anticolonial como um dever, mas um dever à revelia, fruto da necessidade. “Para ele, tratava-se de um dever de se defender contra os invasores — e ponto final. Como todo dever, tem início e fim”. Essa era a “pequena jihad”, conduzida no mundo material; a “grande jihad” seria a luta que todo ser humano carrega junto de si mesmo.

“Expulsar os franceses parece a ser a única coisa pela qual Abdelkader é lembrado na Argélia. Embora isso tenha sido uma parte importante de sua vida, está longe de ser a única grande contribuição que fez”, comentou o diretor. Para Brahimi, a França também teve influência na memória de seu legado. “Sua figura foi esquadrinhada na França por sua estratégia pós-colonial. Entretanto, quando uma só pessoa recebe todo o crédito, é como se roubassem todo o povo argelino das honrarias que merece”.

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Mesmo assim, a obra escolhe expor os horrores da conquista argelina, ao corroborar as palavras do então jovem Emmanuel Macron, ainda antes de ascender à presidência da França, que, em campanha eleitoral, admitiu que o que seu país fez na Argélia foi uma série de “crimes de lesa-humanidade”.

O diretor concorda plenamente: “O que aconteceu na Argélia foi de fato crime contra a humanidade, para dizer o mínimo. Em 1967, decidiu-se anistiar todo mundo por tudo o que aconteceu”. A anistia, no entanto, não quer dizer esquecimento. “As dores e o luto prevalecem. A História não pode ser esquecida nem reescrita”.

Um outro presidenciável francês, François Fillon, ousou descrever a ocupação colonial da Argélia como uma “experiência de intercâmbio cultural”. Segundo Brahimi, isso não passa de um discurso colonialista, ao sugerir que o colonizar traria “luz e civilização” ao povo nativo.

O cineasta insiste que devemos ter em mente o que foi dito e feito antes de falas como essas sobre o passado. “Por exemplo, o general Thomas Bugeaud [1784-1849] pregou sobre os árabes ao parlamento: ‘Caso preciso, matem todos!’ Marshall de Saint-Arnaud ateou fogo em mulheres e crianças. A conquista da Argélia começou com barbárie”.

Para Brahimi, as declarações de Macron são interessantes porque criaram comoção. “A tensão ainda está aqui, nenhum incêndio foi verdadeiramente apagado. Mas Macron é de uma geração mais jovem, o que também é interessante”.

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O diretor argelino busca dar uma dimensão humana ao emir Abdelkader, ao recorrer a especialistas internacionais para pôr sua vida em perspectiva. “Poderíamos ter utilizado apenas especialistas argelinos, mas eu queria criar uma narrativa polifônica para dar à história um sentido universal. Experts internacionais não são emocionalmente afetados pela história franco-argelina, e conseguem falar mais livremente. Universalismo implica em levar ao público aquilo que te define e ver como as pessoas realmente conseguem se identificar com isso em escala global. Os argelinos não estão acostumados a verem a si mesmos dessa maneira — a perceber que a Argélia pode ser universal”.

O documentário aborda habilmente a biografia do emir. Abdelkader, certamente, não é retratado como um santo — não em um sentido puramente passional. O documentário usa o dialeto darija do árabe, falado na Argélia, por meio da voz reflexiva, quase como um mantra, do cantor e compositor Amazigh Kateb; o alaúde de Mehdi Haddad confere ritmo à narrativa. O emir é visto como uma figura complexa e moderna, muito embora Brahimi expresse orgulho de que seu documentário não é objetivo. “Nem poderia ser. Lutei, na verdade, para evitar retratar o emir como uma espécie de super-herói ou um herói romântico. Destaco a serenidade quando se trata dessa figura história. O emir se viu no meio de uma batalha ideológica na Argélia, mas não parecia interessado em cair apenas nisso”.

Abdelkader nasceu em Guetna em 1808, quando a Argélia ainda estava sob domínio otomano. Seu pai, Sidi Muhieddin Al-Hassani, foi o muqaddam, ou facilitador, de uma Zaouïa, ou irmandade religiosa. Ao se tornar um hafiz — indivíduo que memoriza todo o Alcorão — logo aos 14 anos de idade, Abdelkader poderia ter levado uma vida pacata de um homem religioso. Os eventos, no entanto, ditaram o oposto. Como declarou em certa ocasião: “Os acontecimentos me fizeram mais do que eu os fiz”.

A França expulsou os otomanos da Argélia em 1830, após uma rusga diplomática entre o dey de Argel — espécie de governador otomano — e o cônsul do Estado europeu. A fim de conter os invasores, Abdelkader tornou-se “emir”, isto é, uma liderança política, militar e religiosa. Abdelkader lutou contra o exército francês por 17 anos, através dos quais sua inteligência política se evidenciou, senão por suas táticas, pelo uso de sedes móveis a sua gestão. Quando eventualmente se rendeu, foi aprisionado em Ambroise, na França, apesar de promessas de exilá-lo em um país árabe.

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“Abdelkader sempre foi capaz de recomeçar diante das circunstâncias que apareceram a sua frente”, comentou Brahimi. “Foi capaz de retomar a guerra de tal maneira que os prisioneiros foram protegidos. Fez a colonização francesa também voltar no tempo, de modo a culminar no estabelecimento de um Estado argelino. Sua vida sempre foi cheia de surpresas e reviravoltas. Em Ambroise, no entanto, recusou um acordo”.

Quando Napoleão III chegou ao poder, em 1848, autorizou o emir a viajar ao Levante; a primeira parada foi na Turquia e, em seguida, Damasco, onde seguiu com seus estudos do sufismo para encontrar “equilíbrio espiritual”. É isso que caracterizava como “grande jihad”, a luta contra nossos nafs — ou ego. De fato, o sufismo esteve presente em toda sua vida. Argumentou Brahimi: “Suas habilidades políticas vieram do sufismo e de sua disciplina intelectual. O sufismo ensina as pessoas a se desapegarem das aparências. É uma visão particular de mundo. Como acomodar ideias de guerra e paz, não somente com o outro, mas consigo mesmo. Livrar-se de conceitos maniqueístas. Tudo tem um propósito e um sentido. E graças a essa filosofia, ele foi capaz de administrar a logística da guerra, expulsar os invasores sem se tomar de paixões pelo conflito ou alimentar o ódio ao inimigo. Foi uma figura espiritual e um excelente estrategista”.

Na Síria, Abdelkader se tornou protetor das comunidades cristãs e judaicas, quando 12 mil deles estavam ameaçados por levantes. O documentário de Brahimi faz uma nítida associação entre passado e presente, ao nos levar aos horrores em curso não somente no território sírio, como em todo Oriente Médio e Norte da África.

A saga do emir é uma história panárabe que se passa em tempos coloniais. Vemos diversas associações com temas como cultura, poesia e religião. E as questões postas no período otomano ainda nos fazem pensar na Síria hoje, em uma guerra em que agentes externos têm interesses distintos, com a população pagando o mais alto custo.

Em nome do Islã, apontou Brahimi, o emir escolheu um caminho distinto, ao fazer com que as pessoas encarassem suas próprias responsabilidades. “Abdelkader se opunha ao Império Otomano, que lavou as mãos diante dos massacres contra cristãos e judeus em 1860, e também aos franceses, que alegavam ser os únicos protetores dos cristãos no Oriente Médio”.

Abdelkader foi uma figura de facetas militares, espirituais e humanitárias. Sua vida foi base a reflexões sobre a ética de guerra e a questão dos prisioneiros antes mesmo da Convenção de Genebra de 1929 e seus termos sobre a matéria. “É isso que acho muito interessante sobre ele”, enfatizou Brahimi, “pois quem quer que você seja, você pode escolher ser outra pessoa. O mundo árabe tem uma visão bastante fatalista de si, mas não vê uma causa perdida. Podemos escolher agir diferente. O emir decidiu não reagir ao inimigo da mesma maneira que agia este inimigo. Superou enfim esse ciclo vicioso, ao criar uma nova forma de travar sua guerra”.

Emir Abdelkader, líder militar e religioso argelino que comandou a luta contra a invasão colonial francesa em meados do século XIX [Wikipedia]

Abdelkader praticou sua fé com fervor, era rigoroso, mas isso tampouco o impediu de proteger outros povos. “Se o Islã político da Argélia não foi corrompido, então faz bem em honrar seu legado, mesmo que não concorde totalmente com ele”, insistiu o autor. “O Islã na Argélia é baseado em valores importados que pouco compreendemos. O que são essas pessoas obcecadas com barbas compridas, como no Afeganistão? Por que é que essas vestes estranhas também têm de ser nossas? Não se trata de uma mitologia própria sobre o conceito de jihad?”

Para Brahimi, a cura para o fundamentalismo está, de certo modo, na biografia do emir Abdelkader. “Ele tinha raízes em sua cultura e em seus valores. Não via o secularismo como chave. Mas a forma como praticava o Islã era simples e ética”. Portanto, indicou o documentarista, as soluções para os problemas da Argélia podem estar em sua própria história. “As soluções também têm raízes profundas e são pacíficas. A Argélia era uma terra de coexistência entre culturas e fés e não podemos aceitar sermões que apontem em outro sentido”.

De maneira ampla, a vida do emir Abdelkader põe em perspectiva questões atuais que a civilização contemporânea busca responder. “A forma do emir de praticar sua religião é também um anticorpo contra o extremismo”, concluiu Brahimi. “O emir não era um homem de meias palavras no que diz respeito à religião — era rígido. Mas a maneira como via um cristão, um judeu ou um prisioneiro era diametralmente oposta às ações do Daesh ou das milícias de nossa guerra civil. Seu ponto de vista espiritual era e ainda é, portanto, bastante moderno”.

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