Nas últimas semanas, observamos a intensificação da tensão entre Líbano e “israel”. No dia 30 de julho o mundo observou “israel” atacar o Beirute, a capital do Líbano, sob o auspício de ter como alvo o líder do Hezbollah, Fuad Shukr. Segundo o ministro da defesa israelense, o ataque foi “direcionado”. Apesar de um dos mais recentes, esse não foi o único ataque que “israel” realizou em território libanês nos últimos meses. Mais de 350 pessoas foram mortas no Líbano por ataques israelenses desde o dia 8 de outubro, segundo a ONU. Em contrapartida, “israel” declara que 30 pessoas foram mortas em ataques advindos de território libanês desde a mesma data, enquanto no Líbano, cerca de 583 pessoas foram mortas.
Desde o dia 8 de outubro, de acordo com o Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos (ACLED), “israel”, o Hezbollah e outros grupos armados no Líbano trocaram pelo menos 7.400 ataques através da fronteira entre 7 de outubro de 2023 e 21 de junho de 2024. “israel” conduziu cerca de 83% destes ataques, totalizando 6.142 incidentes. O Hezbollah e outros) grupos armados foram responsáveis por 1.258 ataques. (Com informações do Jornal Al Jazeera).
A Carta da ONU traz em seu artigo 2º, §4º o compromisso que os países devem fazer em não utilizar a força para a resolução dos conflitos:
Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.
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Apesar do artigo 2º, havemos de observar também o artigo 51:
Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais
O direito à legítima defesa, segundo a CIJ, é muito anterior a Carta da ONU, ela somente codifica o costume internacional.. A Carta da ONU afirma que para que a legítima defesa possa ser invocada pelo Estado agredido, o costume internacional, há muitas décadas, estabelece alguns requisitos, a saber o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, não podemos deixar de observar o direito do Líbano, garantido pela Carta das Nações Unidas, à retaliação proporcional aos ataques recebidos por “israel”.
Apesar de a situação estar chamando atenção agora, o Líbano, bem como outros países que circundam o território palestino já eram alvos muito antes de “israel” ser autoproclamado como Estado. O livro “Expulsão dos Palestinos”, do autor Nur Masalha, nos traz uma série de documentos históricos que comprovam que líderes sionistas, anos antes de 1948, já possuíam interesse em outras terras da região do Levante:
“Referindo-se aos planos de Rothschild, Shabtai Levi, de Haifa, que trabalhou como comprador de terras para a organização fundada pelo barão – Associação de Colonização Judaica na Palestina -, escreveu em suas memórias:
“Ele me aconselhou a manter atividades similares, mas que seria melhor, disse, não transferir árabes para a Síria e para a Transjordânia (atual Jordânia), já que essas eram parte das Terras de Israel, mas sim transferi-los para a Mesopotâmia (Iraque). Ele acrescentou que, nesses casos, estaria disposto a mandar aos árabes novas máquinas agrícolas e especialistas em agricultura.”.
De encontro ao trecho acima, “israel” se apoderou das Colinas de Golã na Síria e do Deserto do Sinai no Egito (território devolvido ao Egito em 1982 após negociações), em 1967 (após a Guerra dos 6 dias) consumando sua ocupação para além do território da Palestina Histórica. Já em 1982, as tropas israelenses invadiram o sul do Líbano sob o pretexto de aniquilar as bases da OLP (Organização pela Libertação da Palestina) na região e a ocupação durou até o ano 2000.
Atualmente, “israel” só possui fronteiras firmadas com a Jordânia e o Egito após a assinatura de tratados de paz. Em território sírio, as Colinas de Golã continuam ocupadas desde 1967. Já em território libanês, a fronteira continua em disputa com tensões frequentes, apesar de haver a linha do armistício de 1949 que garante minimamente uma fronteira entre os dois territórios.
Politicamente, o Líbano representa uma espécie de “pedra no sapato” dos planos de colonização sionista. De certa maneira, é profundamente incômodo à ocupação possuir de maneira tão aproximada uma força de resistência como o Hezbollah. Entretanto, a disparidade de números de vítimas nos traz uma demonstração muito clara do que “israel” vem empregando no Líbano: a punição coletiva da população, bem como o faz em Gaza, e a desproporcionalidade nas respostas aos ataques do Hezbollah e outros grupos.
Para além da punição coletiva, teme-se que “israel” empregue planos semelhantes aos de Gaza para o Sul do Líbano, movidos pelo interesse nos recursos naturais de ambas localidades. Na última década, mais uma reserva de gás natural, para além das reservas Tamar e Leviatã, foi descoberta na costa da Palestina, a Gaza Marine, com bilhões de metros cúbicos. No Líbano, a fronteira com “israel” abriga uma das maiores reservas de gás natural ainda não exploradas do mundo, com 530 bilhões de metros cúbicos de gás natural segundo a UNTAD (Agência da ONU para comércio e desenvolvimento). Concomitante a isso, um dos principais gasodutos da europa, que ligava a Rússia até a Alemanha, o Nord Stream, foi bombardeado. Em suma, as circunstâncias apontam que “israel” pode estar apostando nas reservas de gás natural da fronteira do Líbano e de Gaza para suprir o abastecimento de gás natural da Europa.
Factualmente, não podemos deixar de notar que a cada dia que se passa, “israel” avança mais nas agressões contra o Líbano. Diversos países já alertaram seus cidadãos a deixarem a região, dando a indicar que os ataques irão se intensificar nos próximos dias. Sabe-se da potencialidade destrutiva de mais um conflito com o Líbano e da contingência de uma regionalização do conflito. Em entrevista ao The Associated Press, o legislador do Hezbollah, Amin Sherriue, afirmou que o governo tem um plano de emergência em caso de guerra total, e o país tem combustível e medicamentos suficientes para durar entre dois e quatro meses. “israel” sempre teve no Líbano um alvo, agora mais do que nunca, podendo ocorrer nos próximos dias o aumento do derramamento de sangue do povo libanês.
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