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Próspera e poderosa: Por dentro da comunidade síria na Venezuela

Mais de um milhão de venezuelanos possuem raízes sírias. Membros da diáspora chegaram aos corredores do poder e se tornaram parte integral do tecido social do país.
Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em Sweida, ao sul de Damasco, após se encontrar com seu homólogo sírio, Bashar al-Assad, em 4 de setembro de 2009 [Louai Beshara/AFP via Getty Images]

Aninhado na marina da cidade portuária de Puerto La Cruz, no norte da Venezuela, o eminente autor e arabista Habeeb Salloum surpreendentemente clamou: “Encontrei um dos kebabs mais saborosos que já comi”.

“A cozinha, natural de Aleppo, fez um trabalho soberbo”, escreveu sobre sua visita em 2018. Em seguida, reiterou: “Nenhum prato, nem mesmo em seu país natal, poderia ser mais satisfatório do que esse jantar em um dos maiores resorts da Venezuela”.

O relato não significa, de modo algum, que o falecido Salloum, árabe-canadense, possuísse um palato limitado ou pouco conhecimento de bons kebabs, mas representa, na verdade, o reflexo da força e do impacto cultural da comunidade síria na Venezuela.

O país latino-americano é historicamente lar de uma influente diáspora síria. É difícil precisar os números, mas há algo entre 700 mil e um milhão de venezuelanos com origens sírias, entre um total de 1.6 milhões de árabe-venezuelanos.

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“A comunidade síria na Venezuela é vasta e importante, não somente em termos demográficos, como também em acuidade econômica ao país”, explicou ao Middle East Eye o jornalista árabe-venezuelano Halim Naim.

Êxodo otomano

A chegada dos primeiros sírios à costa venezuelana data do fim do século XIX, quando o Império Otomano, que ocupava a moderna Síria, passava por crises severas, levando muitos habitantes aos mares em busca de novas oportunidades de vida.

“A Síria, assim como todo o Oriente Médio, passava por um tempo duríssimo”, comentou Naim. “Na Síria, havia batalhas, disputas e guerra, e as pessoas tiveram, de alguma forma, que fugir de tudo isso”.

Estima-se que aproximadamente 1.2 milhão de pessoas deixaram o Império Otomano entre os anos de 1860 e 1914, ao migrar para as Américas na esperança de um futuro melhor.

Desfile otomano na Síria; muitos sírios deixaram o país para romper com o domínio turcomano [Domínio Público/Reprodução]

“Para os imigrantes do fim do século XIX e começo do século XX, tudo isso era América — e não apenas os Estados Unidos. Os primeiros imigrantes que chegaram à Venezuela planejavam ir aos Estados Unidos, que representava essa concepção vaga e generalista do hemisfério [ocidental]”, observou John Tofik Karam, professor de Estudos Latinos e Latino-americanos da Universidade DePaul de Chicago e diretor do Centro Lemann para Estudos Brasileiros.

Como era o caso de todos os migrantes levantinos que fugiam do jugo otomano na ocasião, os sírios que chegavam foram considerados, a princípio, “turcos”, em seu novo lar na Venezuela. A onda de imigrantes sírios, de modo geral, assentou-se bem no país latino-americano, sobretudo na capital Caracas e nos estados de Nueva Esparta, Zulia e Carabobo.

Integração e mobilidade social

Os sírios na Venezuela seguiram a vida como simples mercadores ou mascates, e começaram a trabalhar como sapateiros, caixeiros viajantes ou marceneiros, antes de estabelecer negócios ou lojas próprias. Nos primeiros anos, optaram por um estilo de vida mais rural, acanhados diante do ambiente metropolitano, em busca de uma vida mais tranquila que lhes permitisse ascender economicamente e assegurar mobilidade social.

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“Chegaram a pequenas cidades venezuelanas porque ali se sentiam em casa. Buscaram as áreas rurais e se instalaram em lugares que não tinham muitos negócios, pois isso lhes permitiu firmar o pé na economia. E funcionou bem. Tornaram-se uma comunidade poderosa, tanto em termos de economia quanto população”, acrescentou Naim.

A prosperidade da comunidade síria em sua nova casa se facilitou devido às similaridades entre as culturas da América Latina e do Oriente Médio, que possibilitaram integração e crescimento mais fluidos.

“Sua integração foi quase imediata, aconteceu de maneira bem natural”, enfatizou Diego Gomez Pickering, jornalista, diplomata e escritor, ao Middle East Eye.  “O processo de se adaptar à nova realidade ocorreu de forma um tanto abrupta, mas sem sobressaltos e amigavelmente àqueles imigrantes do Levante, porque as estruturas sociais da América Latina não eram tão diferentes das sociedades árabes”.

Modelo sírio-venezuelana Mariam Habach durante concurso do Miss Universo, em Manila, nas Filipinas, em 26 de janeiro de 2017 [Ted Aljibe/AFP via Getty Images)

Somou-se a isso uma amistosidade cultural a sírios e árabes que permitiu melhor acomodação. “Quando você diz ‘árabe’ na Venezuela, invoca alguém familiar, à medida que um anglófono do Norte ouve a palavra com estranheza”, reiterou Tofik Karam ao Middle East Eye.

O foco na estabilidade econômica entre os primeiros imigrantes permitiu a futuras gerações que priorizassem sua educação e aprofundassem prospectos socioeconômicos no país.

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“A primeira geração, em maioria, não tinha educação formal; quando veio o dinheiro, puseram seus filhos na escola”, prosseguiu Karam. “Na Venezuela e em toda parte, os principais campos de estudo eram a medicina, o direito e a engenharia, e, dentro da primeira geração nascida em solo venezuelano, vemos diversas figuras notáveis ascendendo na pirâmide social e se tornando politicamente bem-sucedidos”.

Divisão e influência política

A influência da diáspora síria na Venezuela atingiu o ápice na virada do século, durante a gestão do ex-presidente Hugo Chávez, falecido em 2013.

“Começamos a ver sírios participando da política nacional, em particular, durante a introdução do chavismo na Venezuela, como algo similar à ideologia que muitos conheceram em sua casa”, argumentou Naim.

Alguns sírio-venezuelanos encontraram sucesso como políticos chavistas. Entre alguns notáveis: Tareck El Aissami, ex-ministro do Interior e ministro do Petróleo; Haiman El Troudi, ex-ministro dos Transportes; Soraya El Achkar, ex-chefe da Polícia Nacional; e Adel El Zabayar, ex-membro da Assembleia Nacional. Este chegou a viajar à Síria para juntar-se às tropas do governo de Bashar al-Assad durante a guerra civil. Em 2020, foi indiciado nos Estados Unidos acusado de participar de conspirações narcoterroristas, além de diversos crimes relacionados ao tráfico de armas.

No poder, Chávez estabeleceu uma aliança com Assad, ao visitar Damasco em diversas ocasiões, denunciar Israel e mesmo estabelecer voos diretos entre Caracas e a capital da Síria.

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“O governo venezuelano assumiu guarida em um discurso de defesa das minorias, parceria com os árabes e antagonismo a Israel e a qualquer nação imperialista, conforme seu ponto de vista”, apontou Naim. “Isso certamente agrada aos sírios, que ouvem um discurso parecido desde que nasceram. Isso faz com que se sintam em casa e protegidos e apoiem o regime — não todos eles, mas muitos apoiam o chavismo na Venezuela”.

A proximidade entre os regimes da Venezuela e da Síria engendrou uma fissura na comunidade sírio-venezuelana contemporânea, à medida que muitos discordam de um relacionamento tão íntimo com o governo de Assad. Segundo Karam, “a comunidade está dividida, assim como boa parte da Síria”.

Ao espelhar a crise síria, que fez com que milhões de pessoas fujam do país, a devastadora crise econômica na Venezuela, causada por má gestão, queda nos preços de petróleo e sanções dos Estados Unidos, compeliu seis milhões de venezuelanos a deixar o país.

Ainda assim, apesar da situação politicamente carregada em sua terra e das cisões na diáspora, sírios radicados no país construíram uma comunidade próspera que exerceu um papel chave no desenvolvimento do Estado moderno da Venezuela.

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“Foram bastante influentes, o que vemos mesmo no âmbito cultural. Acredito que a população, não somente síria, mas do mundo árabe de modo geral, contribuiu enormemente com o avanço da Venezuela”, concluiu Naim.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 18 de agosto de 2022

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