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Imigrantes na Espanha: Como as fake news mantêm minorias marginalizadas

O aumento da imigração na Espanha acompanhou uma nova de islamofobia no país, junto a fake news difundidas online para demonizar refugiados e muçulmanos
Famílias muçulmanas protestam contra um surto de islamofobia após os atentados de Cambrils e Barcelona, em Granada, na Espanha, em 23 de agosto de 2017 [Jorge Guerrero/AFP via Getty Images]

Ao realizar sua jornada pelo Mar Mediterrâneo, em busca de um futuro na Espanha, um grupo de jovens árabes traz consigo uma mensagem clara a seus anfitriões.

“Cortaremos a garganta de todos os infiéis espanhóis que não louvam o [Profeta] Muhammad”, parecem cantar ao se aproximar das praias europeias. Um deles carrega uma faca. O vídeo dos supostos imigrantes no mar recentemente emergiu online e rapidamente se espalhou nas redes sociais da Espanha, incluindo Facebook, Twitter, Telegram e WhatsApp.

“Isso assustador e nossos políticos parecem felizes em deixá-los vir”, diz um comentário.

“Que desgraça! Não dá para imaginar esse cara com a faca matando cristãos na igreja?”, afirma outro usuário. “Nós colocamos eles em hotéis e se você discorda, você é racista ou fascista”.

No entanto, como era de se esperar, o conteúdo do vídeo é absolutamente falso. A tradução do árabe está deliberadamente errada, para que a legenda se torne uma ferramenta de ódio. Uma breve pesquisa ou uso de um aplicativo de identificação de músicas demonstra que os rapazes, na verdade, cantam uma popular canção argelina chamada Adeus, Salam.

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O vídeo é parte de uma onda de peças de fake news difundidas na Europa, cujo intuito é atacar os imigrantes, sobretudo árabes e muçulmanos. Entre as mentiras, estão barcos de 500 pessoas chegando ao litoral, mesquitas violando regras contra o covid-19, muçulmanos atacando escolas por receitas com porco e refugiados abusando do sistema previdenciário.

“Mentiras sobre a migração buscam reforçar quatro ideias fundamentais: de que os imigrantes e muçulmanos são perigosos; de que têm privilégios de previdência social; de que buscam impor sua cultura; e de que as instituições vão permiti-los”, relata Natalia Diez, jornalista especializada em conferir informações para o canal Maldita Migración.

Refugiados resgatados de um barco à deriva perto das Ilhas Canárias, na Espanha, em 14 de setembro de 2021 [Europa Press via Getty Images]

Fake news 

As fake news coincidem com o aumento da imigração. Em 2019, a Espanha viveu um recorde de 748.759 pessoas entrar no país. Colombianos, venezuelanos e marroquinos assumiram o pódio de nacionalidades.

“Fake news sobre os muçulmanos na Espanha são constantes e estão intimamente associadas a fake news sobre a imigração”, explicou Diez. “No que diz respeito a desinformação sobre o Islã, os temas mais comuns são privilégio, violência e terrorismo. Por meio de mentiras, reforça-se a estrangeirização dos muçulmanos na Espanha, ao vinculá-los essencialmente à imigração. Essas mentiras têm um objetivo claro de mudar boa parte da percepção pública sobre esses grupos e reafirmam argumentos falsos nos quais as pessoas acabam acreditando”.

Na última década, a propagação de fake news se tornou uma apreensão cada vez mais urgente em todo o globo. A Espanha não é exceção.

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A organização independente de checagem de fatos Maldita foi fundada em 2017 com o objetivo de combater e desmentir conteúdos que viralizam. Uma das seções mais ocupadas é o ramo de migração comandado por Diez.

De 2017 a 2020, a Maldita Migración identificou 321 itens de fake news vinculados a migração e religião. De acordo com o relatório de Desinformação, Minorias e Discurso de Ódio, 168 destes se baseavam unicamente em migração e 129 se associavam diretamente a questões de fé; desta segunda categoria, 70% diziam respeito exclusivamente ao Islã.

O número de fake news relacionadas a minorias religiosas também aumentou constantemente, de 25% a 29% entre 2017 e 2018 e então a um pico de 45% em 2019.

“Vemos que as fake news sobre a comunidade islâmica têm um impulso massivo. Se espalham mais do que quaisquer outras”, destacou Monica Carrion, diretora de projetos educacionais do Observatório de Islamofobia na Mídia. “A má cobertura na imprensa afeta toda a comunidade, sejam nativos ou estrangeiros. Não apenas há ataques online e na mídia, como esses ataques se traduzem a agressões físicas contra a comunidade. É aqui que está o maior problema — quando a islamofobia põe em risco a coexistência social”.

Entre 2017 e 2019, a imigração se tornou um problema emergente aos olhos da população. Em 2020, os índices se estabilizaram, segundo o Centro de Investigações Sociológicas (CIS) — órgão público de pesquisa. O estudo revelou ainda que a percepção sobre a imigração como uma das três principais preocupações entre os espanhóis subiu de 3.8% em janeiro de 2017 a 15.6% em setembro de 2019, para cair a apenas 1.6% em junho de 2020, no período do covid-19.

Islamofobia em ascensão

A Espanha não esteve imune entre os países que vivenciaram um aumento no ódio islamofóbico nos últimos anos. Muitos atribuem o sentimento aos ataques terroristas de 2017 em Cambrils e Barcelona, nos quais 16 pessoas morreram. O Ministério do Interior admitiu que casos de ódio contra os muçulmanos na Espanha tiveram aumento de 120% entre 2017 e 2019.

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O ministério, no entanto, sofreu críticas por uma falta de compromisso, como vê o público, em combater a islamofobia. Ao lançar seu plano de ação contra os crimes de ódio, em 2018, a pasta optou por não categorizar especificamente a islamofobia, sob o pretexto de “ser desnecessário”, como alegou o então ministro responsável Fernando Grande-Marlaska.

Dados sobre a islamofobia variam — órgãos estatais e ongs independentes costumam produzir resultados distintos. A Plataforma Cidadã Contra a Islamofobia (PCI), por exemplo, registrou 546 casos em 2017 — cinco vezes mais do que o governo.

Ativistas e refugiados protestam contra o Pacto Europeu para Imigração e Asilo Político, na Plaza de Callao, em Madrid, na Espanha, em 11 de abril de 2024 [Francesco Militello Mirto/NurPhoto via Getty Images]

“O tamanho do problema não se reflete com precisão nas estimativas porque não costumamos distinguir islamofobia, xenofobia e racismo. É uma forma pela qual o Estado para invisibilizar os poucos dados que tem”, comentou Aurora Ali, ativista hispano-egípcia e membro da Associação Muçulmana por Direitos Humanos.

Apesar do relatório do PCI ter sido divulgado há anos, suas descobertas compuseram a base do Dossiê sobre Discriminação dos Muçulmanos de 2020, produzido pelo governo.

Houda Mahdi está entre os dois milhões de muçulmanos que chamam a Espanha de lar. Houda vive no país há mais de 15 anos e recorda preconceitos contra sua fé desde o princípio.

Conforme o Observatório para Racismo e Xenofobia, também estatal, 87% dos muçulmanos são discriminados no buscar um imóvel para comprar ou alugar; 83% sofrem preconceito ao buscar um emprego.

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“Me deparei com islamofobia em muitos cenários do dia a dia e em todas as áreas: no trabalho, na vida acadêmica, mesmo no transporte público”, relatou Houda. “No decorrer dos anos, ficou pior. Acontece cada vez mais. A islamofobia se tornou algo tolerado e normalizado. Na Espanha, [a islamofobia] não para de crescer, muito, muito rápido, graças a pessoas que a apoiam ou que simplesmente escolhem ignorar o problema”.

Um relatório do governo sobre crimes de ódio revelou que os marroquinos são os mais visados, com 7.8% dos casos cometidos contra estrangeiros na Espanha. Além disso, segundo protocolos de identificação policial, é seis vezes mais provável que cidadãos marroquinos sejam abordados pela polícia, em comparação a um branco nativo.

Marginalização política

Em 1992, o Estado espanhol firmou um acordo com a comunidade islâmica no país para garantir integração e representação igualitária na sociedade. Mais de 30 anos depois, entretanto, muitos muçulmanos ainda carecem dos direitos básicos que lhes foram prometidos.

Estima-se que 90% dos estudantes muçulmanos careçam de acesso ao ensino religioso ao passo que 90% dos professores da matéria continuam desempregados. Os números contradizem fake news de que escolas são forçadas a ensinar estudos islâmicos. Além disso, 95% dos muçulmanos na Espanha não têm acesso a um cemitério próprio e 12% não têm acesso a mesquitas.

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Em 2021, a página do Twitter do partido de extrema-direita Vox foi bloqueada por “incitação ao ódio” após lançar uma campanha online sob a hashtag “Pare a Islamização”.

Santiago Abascal, presidente do partido espanhol de extrema-direita Vox, participa do evento anual Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), em Maryland, nos Estados Unidos, em 23 de fevereiro de 2024 [Kent Nishimura/Bloomberg via Getty Images]

Questionada se os muçulmanos estão integrados à vida política na Espanha, a ativista Aurora Ali é taxativa: “Não, de maneira nenhuma. Muitos muçulmanos nem mesmo têm direito ao voto. A esquerda é nossa única esperança, mas mesmo eles não nos tratam muito bem”.

Para que haja avanços, Aurora crê que é fundamental construir alicerces de representatividade da comunidade nos corredores do poder.

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“A mudança tem de vir de dentro das instituições e da legislação vigente. Caso tivéssemos apoio legal e legislativo, talvez nada disso estaria acontecendo”, insistiu Aurora. “Hoje, porém, parece que tudo vai contra nós porque não temos proteção legal”.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 7 de abril de 2021.

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