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Guerra no Sudão pode terminar sem que muitos saibam sequer que ocorreu

Mulheres protestam por paz no Sudão, em meio a negociações por cessar-fogo, na cidade de Genebra, na Suíça, em 14 de agosto de 2024 [Fabrice Coffrini/AFP via Getty Images]

Desde abril de 2023, o Sudão enfrenta um conflito devastador pelo poder, que já resultou na morte de milhares de pessoas. Atualmente, dezoito milhões de sudaneses enfrentam fome aguda, e quase dez milhões foram forçados a abandonar suas casas, criando a maior crise de deslocamento interno do mundo. O cenário inclui sarampo, cólera e outras doenças preveníveis que se espalharam rapidamente. Apesar da gravidade, a “mídia da desinformação” permanece em grande parte silenciosa, e pouco se fala sobre a tragédia em curso no país norte-africano.

Hoje, 14 de agosto de 2024, começam em Genebra as negociações para um cessar-fogo no Sudão, mediadas pelos Estados Unidos e com Suíça e Arábia Saudita como anfitriões. Representantes da União Africana, Egito, Organização das Nações Unidas (ONU) e Emirados Árabes Unidos (EAU) estão convidados como observadores.

Embora as mediações tragam esperança, existe o temor de que, mesmo que o conflito termine, as vítimas sejam esquecidas, enterradas em silêncio, enquanto a vida no Ocidente segue como se nada tivesse ocorrido. Para impedir que isso aconteça, é essencial compreender o que acontece no Sudão.

O que acontece no Sudão?

Atualmente, dois grupos militares estão em conflito pelo poder, com desavenças que acorreram após um golpe militar no final de 2021. De um lado, estão as Forças Armadas Sudanesas (FAS), que formam o exército regular com cerca de 200 mil soldados. Do outro lado, estão as Forças de Suporte Rápido (FSR), milícia paramilitar composta por 70 mil a cem mil membros.

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Intervenção internacional

Em abril, quando completou um ano de conflito, uma conferência internacional de doadores arrecadou US$2,1 bilhões em ajuda humanitária para o Sudão. Contudo, no final de maio, a ONU relatou ter recebido apenas 16% dos 2,7 bilhões de dólares necessários para suprir a demanda.

Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos Estados Unidos na ONU, escreveu um artigo no The New York Times intitulado “O imperdoável silêncio sobre o Sudão”, a fim de explicar a gravidade da situação.

Silêncio. Em setembro passado, quando visitei um hospital improvisado em Adré, no Chade, onde jovens refugiados sudaneses estavam sendo tratados por desnutrição aguda, foi tudo o que eu ouvi: um silêncio assustador.

“Hoje, a guerra civil mais uma vez transformou o Sudão em um inferno. No entanto, mesmo depois que grupos assistenciais designaram a crise humanitária do Sudão como uma das piores do mundo, pouca atenção ou ajuda foi dada ao povo sudanês”, argumentou a diplomata. “Por quase um ano, tenho pressionado o Conselho de Segurança a se manifestar. Em 8 de março, o conselho finalmente pediu uma cessação imediata das hostilidades. Este é um passo positivo, mas não é nem de longe o suficiente — e não muda o fato de que a comunidade internacional e os meios de comunicação têm permanecido em grande parte quietos”

O silêncio e a inação do mundo precisam acabar — e acabar agora mesmo.

Em meados de abril, a subsecretária-geral para comunicações globais da ONU, Melissa Fleming, também explorou essa questão em um artigo de sua autoria. Para ela, é possível que um motivo de tamanha falta de atenção para com o Sudão seja o chamado “amortecimento psíquico” — expressão que, conforme sua análise, “se refere ao triste fato de que as pessoas se sentem mais apáticas em relação à tragédia enquanto aumenta o número de vítimas”.

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Outras crises que ocorrem simultaneamente também podem ampliar um efeito amortecedor, apontou Fleming, desde as mudanças climáticas até os conflitos na Faixa de Gaza e na Ucrânia.

Isso também pode estar relacionado com a natureza do conflito no Sudão. Estudos demonstram que guerras civis —vistas como questões internas em países distantes — recebem menos atenção do que as crises em que uma nação ataca a outra.

“Basicamente venho me confrontando com essa questão desde que comecei a trabalhar com os temas sudaneses, em 1997”, destacou Roman Deckert, especialista independente em Sudão, sobre a falta de atenção concedida ao país, em conversa com a rede alemã Deutsche Welle (DW). “Assim como para tantas outras coisas na vida, a resposta é uma combinação de fatores”.

De acordo com Deckert, um desses fatores é a complexidade da situação, na qual nenhum dos lados é obviamente “bom ou mau”. Outro fator remete potencialmente —ou até subconscientemente — ao racismo ou eurocentrismo com raízes profundas dentre a comunidade internacional, conforme o qual pessoas de fora tendem a compreender, de maneira errônea, o conflito como algo “não-civilizado” ou “típico”.

Deckert, que trabalha para uma organização voltada para o desenvolvimento da imprensa independente em Berlim, lembra que, quando começou a estudar o Sudão, a guerra que ocorria nos países da antiga Iugoslávia recebia maior atenção do que a catástrofe gerada pela fome na região de Darfur.

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“Uma jornalista [alemã], que falou a respeito disso em uma conferência, comentou que as paisagens [na Iugoslávia] eram parecidas com as da Europa Central. As pessoas se parecem conosco; as casas se parecem com as nossas. Assim, nos sentimos mais próximos e podemos nos identificar com mais facilidade”, recordou Deckert. “Quem sabe, hoje em dia, é o mesmo com a Ucrânia”.

Desde o início do conflito, trabalhadores humanitários têm estado em campo, muitas vezes colocando suas vidas em risco para salvar outras. Todavia, combatentes de ambos os lados têm deliberadamente minado seus esforços. As Forças Armadas têm bloqueado a principal travessia de ajuda humanitária do Chade para Darfur, e membros das forças rivais continuam a saquear armazéns humanitários.

Líderes regionais e globais devem exigir, de forma inequívoca e pública, que as partes em guerra respeitem o direito humanitário internacional e facilitem o acesso humanitário, alertam observadores. Se as partes não ouvirem, o Conselho de Segurança deve agir rapidamente no sentido de garantir que a ajuda vital seja entregue e distribuída. O conselho deve considerar todas as ferramentas à sua disposição, incluindo autorizar a movimentação de ajuda do Chade e do Sudão do Sul para o Sudão, como fez a ONU com a assistência transfronteiriça na Síria. Os Estados Unidos se dizem preparados para ajudar a liderar essa iniciativa.

O Programa Mundial de Alimentos (PAM) advertiu, no entanto, que, a menos que novos fundos sejam disponibilizados, será forçado a cortar a assistência a centenas de milhares de refugiados sudaneses no Chade já no próximo mês. Apenas uma pequena fração do apelo humanitário das Nações Unidas para o Sudão foi atendida.

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Em seu relatório do Ato Elie Wiesel de 2023, a administração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, advertiu para relatos contínuos de abusos de larga escala no Sudão. Em dezembro, o secretário de Estado, Antony Blinken, declarou que combatentes de ambos os lados cometeram crimes de guerra e que membros das Forças de Suporte Rápido e suas milícias aliadas cometeram crimes contra a humanidade e de limpeza étnica.

Um relatório recente das Nações Unidas notou abusos contra civis, incluindo violência sexual relacionada ao conflito e assassinatos baseados em etnia. Investigadores descobriram que mulheres e meninas, algumas com apenas 14 anos, foram brutalmente estupradas por milicianos das Forças de Suporte Rápido, que atiradores do grupo têm como alvo civis e que vilarejos inteiros foram queimados e suas populações massacradas, entre outras atrocidades. No final do ano passado, segundo o relatório, mais de mil pessoas do povo massalite e outras minorias não-árabes foram massacradas em Ardamata, uma vila no oeste de Darfur.

Neste momento, um punhado de potências regionais continua a enviar armamentos para o Sudão. O apoio externo prolonga o conflito e permite que atrocidades continuem a ocorrer na região de Darfur Ocidental, incluindo massacres que remetem ao genocídio de 2004.

Este conflito não será resolvido no campo de batalha. Será resolvido somente na mesa de negociações. Aqueles com influência, especialmente a União Africana e as lideranças da África Oriental e do Golfo Pérsico, devem empurrar as partes em guerra em direção à paz.

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Mais atenção pode ajudar

Outro fator que torna ainda mais complexa a situação no Sudão é o envolvimento de atores internacionais, alguns dos quais considerados por países ocidentais como aliados ou parceiros comerciais importantes, enfatizou Deckert.

A Arábia Saudita e o Egito são conhecidos apoiadores das Forças Armadas, enquanto os Emirados Árabes Unidos apoiam as tropas paramilitares. “Esta é uma verdade inconveniente [para os aliados ocidentais]”, analisou o especialista.

Contudo, sugeriu Deckert, é também por isso que dedicar mais atenção ao Sudão pode ajudar. Governos sensíveis à opinião pública têm de ser pressionados para usar sua força diplomática sobre atores externos que mantém a guerra em andamento.

Um maior foco no conflito sudanês pode também ajudar as entidades humanitárias que enfrentam dificuldades para trabalhar no país.

Em um estudo de 2021, uma equipe de jornalistas investigativos entrevistou autoridades de alto escalão dos maiores países doadores. Ao mesmo tempo em que as decisões anuais sobre o financiamento humanitário, determinadas em um contexto prévio, não tenham sido necessariamente afetadas, “a maioria dos oficiais acredita que coberturas jornalísticas nacionais e imediatas podem contribuir para amplificar o socorro emergencial direcionado à crise”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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