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De Darfur a Gaza: Enquanto o ‘terceiro mundo’ se mata, nossas mesas seguem fartas

Tanque de Guerra em frente a uma mesquita de Omdurman, no Sudão, em 16 de junho de 2024 [The Washington Post/Getty Images]

Uma missão de investigação da ONU revelou que tanto o exército sudanês quanto as Forças de Apoio Rápido (RSF) – ambos, grupos sudaneses que disputam o poder no país – cometeram inúmeras violações de direitos humanos, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade, durante o conflito no Sudão.

O relatório, publicado nesta sexta-feira (6), aponta que ambos os lados realizaram ataques indiscriminados contra civis e infraestruturas essenciais, como escolas, hospitais, redes de comunicação e serviços básicos de água e eletricidade. As atrocidades incluem estupro, violência sexual, tortura, detenções arbitrárias e maus tratos. O relatório identificou, em particular, que a RSF e suas milícias aliadas perpetraram crimes de guerra, como estupro em massa, escravidão sexual, pilhagem, deslocamento forçado de civis e o recrutamento de crianças-soldado.

O relatório da ONU, acusa tanto o exército quanto as milícias sudanesas de crimes contra a humanidade, o que deveria ser suficiente para mobilizar uma ação imediata. No entanto, como de costume, deixa de lado os maiores criminosos desta e de muitas outras histórias.

A missão de investigação recomenda uma ação imediata para proteger os civis, incluindo o envio de uma força independente com mandato para garantir a segurança da população. São tantas recomendações… Recomendações para o Sudão, recomendações para a Palestina, recomendações para o Congo… — Será que alguém realmente respeita ou considera tais recomendações?

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De fato, que está acontecendo no Sudão e nos demais países em crise humanitária expõe a podridão das estruturas de poder globais, que seguem ignorando crimes de guerra e violações de direitos humanos enquanto fingem promover justiça e paz. E, pior ainda, expõe o fracasso das Nações Unidas em promover uma paz realmente palpável para aqueles que mais necessitam.

Veja a semelhança entre os casos e me diga se essa história não lhe parece familiar: ataques aéreos indiscriminados contra escolas, hospitais e redes de comunicação, além de uma violência brutal dirigida contra civis. Estupro, escravidão sexual, tortura e o uso de crianças-soldado. Ataques sistemáticos contra comunidades baseadas em etnia ou religião praticante. A história se repete de Gaza a Darfur. O mesmo projeto genocida em curso. E onde que está a comunidade internacional? Emitindo notas de repúdio ou de “preocupação”. Contudo, aqui chegamos a um ponto ainda mais fundamental dessa discussão.

Genocídios não estão sendo cometidos com facas ou pedaços de paus. São cometidos com AK-47, uzis, drones e outras armas. A pergunta aqui é: quem produz essas armas? Quem vende essas armas? Com qual intuito se vende essas armas? É óbvio que ninguém vende uma Kalashnikov imaginando que seu portador irá caçar um gnu para o jantar. Armas são vendidas com o único propósito: ataque. Poderia até ser para defesa, mas aí entramos num paradoxo mais profundo. O que quero de fato dizer é que, segundo o mais recente estudo do Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a quantidade de armas importadas pelos países europeus praticamente duplicou entre 2019 e 2023. E sabe quem são os dominantes desse mercado? Vou te dar detalhes:

O que os números revelam é que o “mundo civilizado”, é quem permite e lucra com o genocídio do que eles chamam de “terceiro mundo”, enquanto relaxam no sofá com a família comendo pipoca e assistindo um filminho do Nicolas Cage.

O fato é que cinco entre os dez maiores fabricantes e “traficantes” de armas no mundo estão entre aqueles cujas cadeiras na ONU têm o poder de vetar um cessar-fogo. Sejamos sinceros: você acha que algum comerciante vetaria a própria venda?

A guerra no Sudão continua... - Charge [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

A guerra no Sudão continua… – Charge [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Quanto ao relatório da ONU, num suspiro de impotência, a instituição recomendou o envio de uma força independente para proteger os civis – como se propostas simbólicas tivessem qualquer efeito no campo de batalha. Ao mesmo tempo, sugere um embargo de armas e cooperação com o Tribunal Penal Internacional. — Piada! O comércio de armas continua fluindo para o Sudão, e as grandes potências que alimentam esses conflitos se beneficiam enquanto o povo sangra.

O sistema global de poder não age em nome da justiça: age em nome do lucro. Cada bomba lançada, cada casa destruída alimenta uma cadeia de interesses econômicos que não têm o menor compromisso com a paz. O Sudão, como muitos outros países devastados por guerras, tornou-se um tabuleiro geopolítico para potências como os Emirados Árabes Unidos, que usam a RSF como um braço militar para seus interesses logísticos e corporativos. Enquanto isso, o relatório da ONU insiste em advertir sobre o deslocamento de 8 milhões de pessoas e o massacre de dezenas de milhares de civis desde o início da guerra, em abril de 2023 – números que, na prática, se refletem na conta bancária dos vendedores de armas, ao mostrar que a vida tem um preço determinado.

O discurso moralista de direitos humanos, a retórica da democracia e as palavras vazias de “preocupação” internacional são meras cortinas de fumaça para encobrir um fato: a guerra é um negócio rentável. O Sudão, agora em ruínas, é mais uma peça nesse jogo imundo, onde a verdadeira luta não é pela vida ou paz, mas pelo controle dos recursos, pelas alianças estratégicas e pelo lucro ilimitado.

A ONU pode continuar emitindo relatórios e chamando por um governo civil representativo no Sudão, mas a realidade é que essas instituições globais servem a uma agenda que não contempla a dignidade humana. O apoio internacional à RSF e ao exército sudanês, direta ou indiretamente, perpetua a carnificina. Quando a proteção civil é tratada como apenas mais uma sugestão, e não como uma obrigação, é sinal claro de que a humanidade falhou em aprender as lições mais básicas de sua própria História.

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Já que este artigo aborda as sugestões da comunidade internacional em relação à vida de civis, sinto-me no direito de fazer uma também: retiremos o poder de veto das cinco “potências”, afinal, elas só são potências enquanto lucrarem com a morte de pessoas inocentes.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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