O último imperador do Brasil e sua visita ao Egito

Em 5 de novembro de 1871, um grupo de 15 viajantes, entre eles o célebre arqueólogo francês François Auguste Mariette, fundador do Museu Egípcio no Cairo, chegou às pirâmides de Gizé, após participar de um missa em uma igreja franciscana.

Chefiando a trupe havia um convidado especial: Dom Pedro II. O então imperador do Brasil não foi apenas o primeiro chefe do Estado brasileiro a viajar ao Império Otomano e Oriente Médio, como o primeiro líder das Américas a visitar o Egito.

“Parecem pequenas até chegar a elas e só se faz ideia da altura da grande pirâmide quando se observam os que por ela trepam e vão-se tornando cada vez menores”, escreveu Dom Pedro em seus diários, parte do extenso arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. “Subi facilmente ajudado pelos árabes e no cimo reunimo-nos mais de trinta … Logo que atingimos o alto da pirâmide soltamos muitos hurrahs, agitamos os lenços”.

Dom Pedro II e sua esposa, Dona Thereza Cristina, partiram do Rio de Janeiro, então capital do país, cinco meses antes para sua primeira viagem internacional, ao delegar as responsabilidades do trono a sua filha, a princesa regente Isabel.

Conhecido por seu interesse em culturas e idiomas distintos, com ênfase no mundo antigo e na emergente arte da fotografia, Dom Pedro II, com 46 anos, embarcou em uma jornada que durou 11 meses e o levou à Europa e ao Oriente Próximo.

Roberto Khatlab, autor do livro As Viagens de Dom Pedro II (Benvirá, 2015), descreve a viagem, realizada ainda no século XIX, como revolucionária. “Dom Pedro II estudou e leu sobre o Oriente Médio, seu povo, sua cultura, seus idiomas e suas crenças”, explicou Khatlab ao Middle East Eye. “Em 1871, decidiu que era hora de conhecer a região”.

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Após meses de viagem à Europa, onde visitou a França logo depois da queda de Napoleão III, e a Alemanha, ainda bastante jovem, de seu processo de unificação, Dom Pedro II chegou ao porto de Alexandria, na manhã de 28 de outubro, recebido com todo protocolo do Império Otomano. Entre a delegação de boas-vindas, estava o cônsul honorário do Brasil, Michel Debbané.

O grupo embarcou a seguir em uma extensa jornada transformada, que Dom Pedro II usou para explorar o país, estabelecer contatos e descobrir novas tecnologias e sabedorias ancestrais que poderiam beneficiar seu regime, além de torná-lo conhecido no Oriente Médio.

“O Brasil se tornou conhecido no Oriente graças ao imperador e àquilo que o jornal em árabe da época publicou sobre sua visita”, destacou Khatlab. “Em minhas pesquisas, encontrei jornais [de arquivo] que apresentavam o Brasil a seus leitores; o imperador em si foi um dos fatores a atrair os árabes ao país”.

No 150° aniversário da viagem de Dom Pedro II ao Egito, em novembro de 2021, a embaixada do

Brasil no Cairo, em parceria com o Ministério da Cultura do Estado norte-africano, publicou pela primeira vez parte de sua coleção de fotografias sobre a turnê.

“A exibição tinha como intuito celebrar os laços históricos entre Brasil e Egito ao trazer à luz um importante patrimônio brasileiro”, afirmou Fernanda Tansini, então adida cultural da embaixada brasileira no Cairo e organizadora do evento.

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Com o título De volta ao Egito, a exposição tomou corpo no Centro de Arte Gezira, uma galeria situada no Palácio Príncipe Amry, no rico distrito de Zamalek. O evento se dividiu em duas salas: a primeira dedicada a Dom Pedro II e sua viagem de 1871; a segunda reservada a seu retorno ao país cinco anos depois. Em uma terceira sala menor, imagens da coleção pessoal do imperador são projetadas em looping.

“Visitantes egípcios se surpreenderam ao ver essas imagens pela primeira vez e adoraram ver o país aos olhos de Dom Pedro II, por fotografias que ele mesmo tirou e pelo que ele escreveu em seus diários”, comentou Tansini. “Muitas pessoas me disseram que não conheciam a história do Brasil, que não sabiam que tivemos um imperador, muito menos que viajou ao Egito — ficaram fascinadas com essa história”.

Imperador do Brasil, Dom Pedro II (centro), visita as pirâmides de Gizé, perto do Cairo, no Egito, em 5 de novembro de 1971 [Biblioteca Nacional/Arquivo Público]

Atraído ao Egito

A publicação Description de L’Égypte, de 1809 a 1828, uma compilação de pesquisas conduzidas no país durante a campanha militar de Napoleão Bonaparte e sua subsequente ocupação, junto dos hieróglifos decifrados em 1822, ajudou a criar uma onda de fascínio global pelo Egito e pelo Oriente Médio.

Dom Pedro I, coroado primeiro imperador do Brasil após declarar a independência de Portugal, em 1822, reuniu a maior coleção de artefatos egípcios da América Latina e certamente passou seu deslumbramento ao príncipe.

Pedro II foi coroado em 1841 com apenas 15 anos de idade. Logo desenvolveu um interesse nos campos da arte, fotografia e história antiga. O segundo imperador trocou correspondências com egiptólogos conhecidos e estudou 15 idiomas — entre os quais, o árabe. Em 1886, participou da tradução das Mil e Uma Noites, das quais notas não publicadas são mantidas no Museu Imperial de Petrópolis.

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Acredita-se que Dom Pedro II foi a primeira pessoa do Brasil a registrar sua própria imagem em um daguerreótipo — processo primordial da fotografia. Sua paixão pela técnica o levou a reunir 23 mil fotos ao longo de sua vida, das quais 500 do Egito. As imagens são parte da Coleção Dona Thereza Cristina Maria, preservada pela Biblioteca Nacional, que também abarca livros, jornais, mapas e selos da época. A coleção é considerada Patrimônio da Humanidade e primeiro arquivo brasileiro a integrar o Programa Memória do Mundo da Unesco.

Devido à expertise limitada sobre a conservação fotográfica, a maioria de seus originais doados ao museu foi mantida intocada por quase um século. Somente em 2003, suas imagens vieram a público, por meio de uma exposição em São Paulo.

Quanto aos seus diários, conforme Khatlab, o imperador sempre carregou consigo um pequeno caderno, no qual costumava escrever no fim de cada dia, ao equilibrá-lo sobre seus joelhos ou sobre as pedras que encontrava no caminho, frequentemente à luz de uma vela.

“O diário representa todo um texto sobre história, antropologia, sociologia, religião, arquitetura, costumes, botânica e tecnologia”, destacou Khatlab ao Middle East Eye. Os originais continuam em Petrópolis.

Tanto os escritos quanto as imagens equivalem a documentos e fontes valiosíssimos sobre toda uma era de profundas transformações históricas, a partir de uma perspectiva privilegiada. Ainda além, revelam fragmentos do pensamento da época e suas descobertas científicas, assim como suas relações diplomáticas e toda uma diversidade política, cultural e social.

“São uma tremenda fonte de informações, pouquíssimo estudada”, comentou Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, então coordenador do programa digital da Biblioteca Nacional, ao Middle East Eye. “Não temos, até este momento, uma coleção como essa em todo o mundo. É isso que a torna especial”.

Visita de Dom Pedro II ao Cairo, no Egito [Biblioteca Nacional/Arquivo Público]

Fortalecendo laços

Além do fascínio de Dom Pedro II com a história e a arqueologia do Egito, o que o atraiu ao país foi também sua intenção de fortalecer laços políticos e comerciais e forjar contatos. Dom Pedro expressou seu desejo de se familiarizar com novas tecnologias e conhecimentos de agricultura, indústria e infraestrutura, potencialmente úteis ao desenvolvimento do Brasil.

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No ano de 1858, ambos os impérios — brasileiro e otomano — assinaram um pacto de amizade, comércio e navegação. Em 1865, Dom Pedro enviou um cônsul honorário a Alexandria, o libanês Debbané, focado em robustecer pontes econômicas e diplomáticas com a região. A chegada de Dom Pedro II ajudou nas relações.

Sua primeira viagem, em 1871, foi relativamente curta. Contudo, durante o período, Pedro II foi capaz de se familiarizar com a dinâmica do porto de Alexandria, explorar ferrovias, navegar pelo recém-nascido Canal de Suez, visitar outras cidades como Porto Said e conversar com o quediva Ismail — isto é, o governador responsável. Pedro II visitou moinhos de açúcar construídos pela França e registrou detalhes da rede ferroviária e de navegação, incluindo Suez, ao considerar a abertura de canais em seu próprio país. Dom Pedro passou um dia em Alexandria, seguiu a Suez e embarcou em uma viagem de quatro dias às cidades de Ismalia e Porto Said, em um pequeno navio a vapor, também uma tecnologia recente.

Visita de Dom Pedro II ao Canal de Suez, no Egito [Biblioteca Nacional/Arquivo Público]

Passou uma semana explorando o Cairo e realizou seu sonho de conhecer as pirâmides de Gizé. Na cidade, foi hospedado no Grande Novo Hotel, ao recusar a acomodação oficial durante toda sua visita, e permanecer por mais de uma semana. Seu primeiro dia na capital, 3 de novembro, foi movimentado, a começar pela Mesquita Mohammad Ali, na Cidade Velha:

 

A mesquita merece algumas palavras. O interior é de alabastro e vastíssimo e o zimbório eleva-se majestoso. Muitos passarinhos esvoaçavam chilrando dentro da mesquita e os árabes consideram isto como sinal de felicidade. O átrio cercado de arcadas que precede a mesquita também é belo e está cheio de cordas pendentes para lustres, sobretudo no Ramadan, que se aproxima.

Da mesquita, o imperador seguiu ao emblemático Museu de Antiguidades de Bulak, hoje Museu Egípcio em Tahrir, onde declarou se sentir “maravilhado do grau de perfeição da escultura entre os egípcios, 4.000 anos antes de J. C. [Jesus Cristo]”.

Sobre seu encontro com o quediva Ismail Pasha, escreveu: “É inteligente e fala bem o francês, mas creio que por seus hábitos de sibarita nunca será verdadeiramente reformador”. Também presente na ocasião, seu ministro de Negócios Estrangeiros, Nubar Pasha, assim foi descrito: “É muito inteligente, porém servilíssimo”.

O imperador sentiu que sua viagem seria incompleta sem um pouco de teatralidade e exotismo. Então, em 6 de novembro, visitou Matareya, distrito no norte do Cairo onde montou um camelo em vestes tradicionais do país.

 

Estive em Heliópolis [uma das cidades mais antigas do Egito], ou Matarieh dos árabes, onde examinei o obelisco de Ositarsen I […] O obelisco está 15 pés enterrado na areia, mas assim mesmo honra os séculos de Moisés e Platão. Antes de aí ter ido, colhi folhas de um belo sicômoro que chamam a árvore da Virgem, por ser de tradição que à sua sombra descansara N. Sra. na fugida para o Egito [conforme a Bíblia].

Naquela noite, Dom Pedro II e Dona Thereza Cristina vivenciaram a opulência da corte otomana. Foram convidados a jantar na residência do quediva, com um menu de 15 pratos, como poisson au gratin Genevoises, filet de bœuf a l’anglaise e asperge en branche Hollandaise.

Antes de deixar o Cairo, em 8 de novembro, o imperador brasileiro conseguiu tempo para visitar a biblioteca do Instituto Egípcio, administrada pelo arqueólogo alemão Heinrich Karl Brugsch.

alcorans curiosos, um sobretudo por ser do tempo do Saladino. Brugsch apresentou-me na biblioteca um poeta árabe que há de fazer-me versos e outro árabe que tem traduzido muitos livros franceses para a instrução pública. […] O aspecto de uma escola árabe é curioso, por causa do balancear constante do corpo dos alunos, quando lêem o Koran. Disseram-me que, imitando assim a oscilação dos que montam em camelo, comemoram a fugida de Mohammed de Medina para Meca.

Na manhã seguinte, Pedro II se reuniu novamente com Debbané e partiu do país, rumo à Itália. Durante a jornada pelo Mar Mediterrâneo, celebrou o clima.

Visita de Dom Pedro II ao Cairo, no Egito [Biblioteca Nacional/Arquivo Público]

“A visita de Dom Pedro II foi uma das bases que ajudou a nutrir e fortalecer laços entre o Brasil e o Império Otomano”, observou Khatlab. “Assim, o Egito se tornou uma espécie de trampolim a emigrantes libaneses e sírios [então cidadãos otomanos] ao Brasil, um país que conheceram por meio do imperador e dos relatos de sua viagem nos jornais árabes de então, incluindo o [jornal egípcio] Al Ahram”.

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Dom Pedro encontrou tempo para retornar ao Egito em dezembro de 1876, como parte de uma nova jornada de 18 meses que o levou, junto de uma seleta corte, a América do Norte, Europa, Oriente Médio e Norte da África. Desta vez, passou poucos dias em Porto Said e no Cairo, antes de partir em um cruzeiro pelo rio Nilo, onde conheceu as cidades históricas de Luxor e Assuã e o célebre templo de Abu Simbel. Deixou o Egito novamente em Janeiro do ano seguinte.

O reinado de Dom Pedro II durou 49 anos, e encerrou-se com a Proclamação da República. No exílio, em Paris, jamais voltou ao Egito e faleceu em 5 de dezembro de 1891.

“Dom Pedro II mostrou um notável fascínio com os processos de descoberta de onde viemos e para onde vamos, pesquisou astronomia e cada campo do conhecimento ligado à compreensão de nosso passado como seres humanos”, relatou Ferreira de Andrade. “Fez apenas três viagens ao exterior; em duas delas, visitou o Egito. Era absolutamente fascinado e se sentia conectado com sua história e sua cultura”.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 10 de dezembro de 2021.

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