O envolvimento dos Estados Unidos no que pode ser descrito como o cenário “jogue bombas, depois jogue comida” em Gaza, após meses de bombardeio implacável de Israel, é hipócrita? Muitas pessoas diriam que sim. Essa aparente contradição destaca uma questão muito mais profunda: ao examinar a história do envolvimento dos EUA em Israel/Palestina, essa tática exemplifica claramente como os EUA mantêm seu status imperial global.
Em seu livro Elastic Empire: Refashioning War through Aid in Palestine, Lisa Bhungalia esclarece como a ajuda fornecida pelos EUA contribui para manter o status quo da opressão palestina sob a ocupação israelense. A perspectiva de Bhungalia sobre como os EUA afirmam e sustentam seu domínio global contrasta com a visão convencional. Em vez de se concentrar apenas nos aspectos tradicionais do poder do Estado relacionados à imigração e à aplicação da lei nas fronteiras, o conceito de “império elástico” se expande para novas áreas, examinando particularmente a flexibilidade e a adaptabilidade do poder estatal e imperial nas operações de contraterrorismo em todo o mundo. Concentrando-se na guerra dos EUA contra o terrorismo, fica evidente que a guerra não se refere apenas aos campos de batalha, mas também a “governar os deslocados, os refugiados, os pobres e os ‘vulneráveis’ por meio de organizações humanitárias”. Apesar de apresentar suas ações como necessárias por razões humanitárias ou para a proteção de civis, a guerra ao terror paradoxalmente emprega táticas que desumanizam seus alvos. Por essa lógica, ser uma vítima perfeita nunca é suficiente.
Em regiões como a Palestina, as ONGs geralmente intervêm para preencher o vazio deixado pelo governo, fornecendo serviços essenciais aos civis. Essas organizações geralmente são movidas por compaixão e empatia, mas frequentemente enfrentam limitações devido a restrições de financiamento, já que esse financiamento geralmente vem de países estrangeiros aliados a Israel, o que sugere que elas talvez nunca consigam realizar totalmente as aspirações políticas que os palestinos esperam. Além disso, durante eventos políticos desfavoráveis à causa palestina, as ONGs correm o risco de perder totalmente o financiamento, prejudicando ainda mais sua capacidade de operar com eficácia.
RESENHA: Nós somos palestinos: uma celebração da cultura e da tradição
A guerra contra o terror tornou-se inextricavelmente ligada à dinâmica política da distribuição de ajuda. Um exemplo do livro destaca uma nova norma estabelecida por doadores alinhados ao Ocidente na Palestina desde o governo Trump. Apesar da influência de longa data de Israel sobre a Autoridade Palestina (AP), esse controle não é suficiente para satisfazer as aspirações de Israel e seu principal aliado, os Estados Unidos. Sob o governo Trump, a promulgação do Anti-Terrorism Clarification Act (ATCA) serviu para intensificar a criminalização dos palestinos e resultou na cessação da ajuda à AP, marginalizando ainda mais as preocupações palestinas. Essa legislação autorizou os Estados Unidos a afirmarem o controle sobre os fundos de ajuda globalmente, expondo quaisquer ONGs ou beneficiários de ajuda que lidam com fundos dos EUA, mesmo que não tenham presença nos Estados Unidos, ao risco de ação legal em tribunais dos EUA. Esta seção também aborda a campanha de difamação contra o movimento BDS, que visa associá-lo a um grupo terrorista. Normalmente, essa tática é suficiente para deslegitimar qualquer organização que não seja favorecida por Israel e pelos Estados Unidos.
Para entender a justificativa da guerra em Gaza após 7 de outubro, sob a premissa de que “Israel tem o direito de se defender do terrorismo do Hamas”, o que levou a acusações de genocídio por parte de autoridades da ONU e da Corte Internacional de Justiça, é essencial reconhecer como esse conflito está intrinsecamente ligado ao contexto mais amplo da longa “guerra contra o terror”. Essa justificativa, enquadrada dentro da estrutura de leis e preocupações humanitárias, revela uma complexa rede de dinâmicas de poder geopolítico e considerações éticas, que é a própria essência da elasticidade do império dos EUA.
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