A desonestidade da mídia brasileira perante os ataques a Palestina e Líbano

Desde 7 de outubro de 2023 se viu com mais e mais frequência a grande mídia brasileira se referindo aos palestinos de maneira pejorativa, principalmente no que tange a população de Gaza — muitas vezes reduzida ao Hamas, com suas casas, escolas e hospitais tratados como supostas bases do grupo nacional. Embora a imagem negativa em torno do povo palestino não seja uma construção atual, o peso que ela possui em pleno ao genocídio é muito maior.

A demonização dos árabes pela imprensa ocidental é um fenômeno que se acentuou particularmente após os eventos de 11 de setembro de 2001. Contudo, possui origens históricas ainda mais antigas. Estereótipos que retratam os árabes e muçulmanos como violentos, extremistas e uma ameaça ao “Ocidente” são comumente associados a essa visão negativa. Existem diversos elementos que favorecem essa perspectiva distorcida, abrangendo aspectos políticos, culturais e econômicos.

Ao longo do século XIX e começo do século XX, período em que as potências europeias dividiram o Oriente Médio, a mídia ocidental frequentemente retratou os árabes como “atrasados” ou “bárbaros”, o que justificaria tamanha intervenção colonial. Essa visão foi então reforçada durante a Guerra Fria, período em que diversos países árabes assumiram posturas anticoloniais que confrontavam as potências coloniais.

Após o 11 de setembro, a denominada “guerra ao terror” intensificou a percepção dos árabes como possíveis “terroristas”. Em muitos casos, a mídia ocidental colaborou com essa imagem ao reportar eventos de terrorismo de forma sensacionalista, destacando a fé de seus agentes quando muçulmanos, mas negligenciando ações violentas realizadas por outros grupos. O termo “árabe” tornou-se quase instintivamente ligado ao extremismo e radicalismo, resultando na formação de um estereótipo generalista e perigoso.

Hollywood também teve um papel crucial na demonização dos árabes. Frequentemente, filmes e programas de televisão apresentam os árabes como vilões, terroristas ou indivíduos desprovidos de humanidade. Esta imagem é um exemplo de orientalismo — termo adotado pelo intelectual Edward Said que caracteriza a percepção estereotipada e preconceituosa do Oriente como um “outro” inferior e amedrontador.

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A demonização dos árabes traz consequências concretas, como a discriminação e a islamofobia, que impactam a vida de milhões de árabes e muçulmanos em escala global. Estes se tornam vítimas de discriminação, violência, desconfiança e políticas governamentais opressivas, que buscam limitar suas liberdades, como o aumento da vigilância e restrições severas de imigração.

Estudos sugerem que a abordagem da mídia ocidental ao suposto conflito entre Israel e Palestina desde 7 de outubro tem seguido tendências de viés semelhantes às observadas em conflitos passados. Frequentemente, a mídia emprega narrativas que favorecem Israel, oferecendo um tratamento desigual às partes envolvidas. Nos primeiros dias do conflito, a maior parte da cobertura seguiu a versão oficial israelense, frequentemente negligenciando os princípios jornalísticos de imparcialidade e verificação de fatos. A narrativa oficial deste Estado colonial frequentemente descrevia sua “resposta” militar como justificada, sem considerar as consequências humanitárias para a população palestina de Gaza, sob bombardeio e bloqueio total — incluindo alimentos, água e medicamentos — desde o começo da atual campanha armada.

Em situações específicas, como o ataque ao Hospital Baptista al-Ahli, na Cidade de Gaza, diversos meios de comunicação do Ocidente evitaram apontar diretamente culpados — isto é, Israel. Por outro lado, informações sobre supostos crimes do Hamas, como a “decapitação de bebês”, foram amplamente divulgadas sem confirmação, tornando evidente um padrão deliberado de “dois pesos, duas medidas”, que favorece a desumanização dos palestinos e torna sua morte mais “tolerável” à sociedade ocidental. Atitudes como essas espelham precisamente a tendência histórica da mídia ocidental de retratar os palestinos de forma pejorativa, enquanto as “vítimas israelenses” usufruem de um tratamento voltado a despertar empatia.

Ademais, jornalistas que buscam apresentar a visão palestina e criticar ações de Israel costumam se sentir silenciados, acusados de “antissemitismo” e confrontados com limitações que restringem suas matérias. Grandes emissoras, como NBC e CNN, têm recebido críticas por aceitar que os materiais de seus jornalistas sejam verificados pelas próprias autoridades israelenses antes de serem divulgados — ao suscitar dúvidas sobre neutralidade e censura.

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Para além desse panorama da mídia ocidental, há necessidade de se explorar a questão do silenciamento de jornalistas independentes que tentam mostrar uma outra “face” do conflito, através de suas próprias redes e/ou através de grupos de profissionais independentes.

De modo bastante alarmante, dados do Comitê para Proteção dos Jornalistas (CPJ) confirmaram que, três entre cada quatro trabalhadores de imprensa mortos em 2023 eram palestinos, número que se agravou em 2024, com mais de 163 jornalistas assassinados.

Para além desse histórico de violência explícita, é fundamental mencionar que o exército israelense invadiu e fechou o escritório da emissora Al-Jazeera situado em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, no dia 21 de setembro, em um claro recado de que aqueles que mostrem o que é lhes indesejável — isto é, seus crimes — serão punidos.

O povo palestino é vítima da vilanização e do silenciamento, mas não somente isso. Os ataques recentes contra o Líbano ocorreram em um cenário de um aumento constante das tensões entre Israel e Hezbollah, intensificadas desde o começo do genocídio em Gaza, há quase um ano. Imediatamente após a operação do grupo Hamas contra Israel, em 7 de outubro, o Hezbollah disparou mísseis contra a área ocupada das chamadas Fazendas de Shebaa, no sul do Líbano, intensificando conflitos na fronteira. Desde então, foram realizados milhares de ataques por Israel, causando centenas de óbitos e consideráveis prejuízos à infraestrutura civil.

No mês de setembro de 2024, uma sequência de explosões de aparelhos de comunicação (pagers e walkie-talkies) supostamente pertencentes a integrantes do Hezbollah resultou na morte de dezenas de pessoas e ferimentos em milhares, com fontes indicando envolvimento de Israel nas detonações. Esta ação se seguiu de bombardeios e ataques aéreos cada vez mais intensos que culminaram na invasão israelense por terra ao sul do Líbano, nesta semana, com a intenção explícita de destruir as estruturas na área — sejam elas militares ou civis — e, posteriormente, ocupar a região, como já demonstram os cartazes de propaganda de imobiliárias israelenses que prenunciam “a chance de ter uma casa no sul do Líbano”.

As circunstâncias deixaram até então grandes danos humanos, resultando na morte de mais de mil libaneses em apenas uma semana — incluindo mulheres e crianças.

Em setembro, houve uma breve tentativa breve de cessar-fogo, mas as hostilidades rapidamente voltaram a se intensificar, e os ataques prosseguiram, após a negativa de Israel ao acordo proposto. A intensificação do conflito também impactou outras nações da região, com ataques aéreos israelenses em território sírio, além do assassinato de líderes cruciais do Hezbollah em Beirute, capital do Líbano, e outras áreas estratégicas no país e Síria.

Neste contexto, a mídia brasileira tem veiculado manchetes explicitamente pejorativas e taxativas contra os libaneses, em um claro exemplo da já mencionada vilanização dos povos árabes. Além de manchetes relacionando o sul do Líbano como “reduto do Hezbollah”, há também uma generalização ao povo libanês como “terrorista” e/ou “apoiadores do terrorismo”, como ocorreu com os palestinos no decorrer no ano.

Tal retórica — incluindo adotar eufemismos para invasão territorial, como “incursão terrestre” e “autodefesa” — fomente, mais uma vez a normalização e aceitação do extermínio em massa, ao desumanizar populações inteiras.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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