Este ano, contado a partir do 7 de outubro de 2023, deveríamos fazer um balanço do que está represando nossa capacidade coletiva de nos proteger da perversão. Testemunhamos Israel trucidando gente por todos os meios de que dispõe, inclusive a fome. E agora incluindo o Líbano. Diz-se punição coletiva, o que é um crime internacional. Mas é pior porque se trata de genocídio. Resumir em números as 42 mil vidas eliminadas e milhares feridas não da conta do saldo humano deste ano de guerra. Foram martírios repetidos, diários, exibidos lenta, cruel e cotidianamente, meses a fio, escarnecendo de nossa tentativa de reagir.
Foi um ano terrível de ataques à nossa conexão com a realidade – um balanço difícil de ser feito. O “nunca mais” proferido por muitos que sofreram com o Holocausto teve a validade vencida quando esse pacto foi violado ostensivamente por Israel. Tudo que deixamos de ser se justifica. E esta é uma guinada para o fundo do poço sob as narrativas hegemônicas do pós-guerra. O que estava mais ou menos velado para a maioria, sob as premissas do Direito Internacional, explodiu ao vivo e a cores sangrentas, expondo sem disfarce o jugo do sionismo sobre a Palestina durante décadas, sem alterar o discurso de um establishment que a desumaniza.
Só a cegueira que Saramago enxergou na humanidade pode explicar o crime impune do jovem sionista brasileiro que, feito soldado em Israel, dedicou à sua namorada no Brasil, em transmissão ao vivo, a explosão de uma moradia palestina. E, portanto, as mortes dentro dela. Ali, naquele mundo que derruba estruturas vitais à existência e propagandeia futuros resorts, acrescentando uma guerra psicológica que desnorteia, parece que a ideia inoculada nos soldados é mesmo matar o que sobra da dignidade humana para que a ocupação sionista sobreviva.
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Diz a ciência que nossa plasticidade mental é moldada pelas circunstâncias ambientais e históricas. A cada geração, vamos nos tornando seres do nosso próprio tempo. Podemos nos abrir mais para enxergar o outro e a diferença, incorporar sem espanto novas mediações tecnológicas, e vamos aprendendo a lidar – e até a tentar moldar e controlar – nossa inteligência coletiva e seus subprodutos, como a IA, em nosso favor.
Mas não é apenas para a frente que as circunstâncias nos empurram e é preciso estar alerta. Crianças mutiladas não podem ser parte da paisagem, como agora. Não existe sororidade sem alcançar as mulheres que sangram nessa guerra, mesmo não sendo brancas ocidentais. Olhemos direto para a maioria em Gaza para ver que é uma população sobrevivente a 76 anos de ataques e massacres a cada geração. Velhos mais uma vez arrancados de casa carregam a própria história da Palestina ocupada à força. Mas a maioria é de jovens, homens e mulheres confinados, que nunca viram o mundo além do muro,e que resistem pelas gerações que partiram. E as próximas.
Não precisamos especular se guerras cognitivas da neurociência e cibernética serão capazes de reconfigurar nossas emoções diante disso, exacerbar o ódio ou rebaixar nossa empatia para aceitar o crime e a impunidade na guerra em Gaza e agora na Cisjordânia, alvo expandido do extremismo de militares e colonos. Ferramentas mais rudimentares de propaganda de guerra com os mesmos efeitos já estão entre nós há muito tempo.
Mais triste é a condição à qual a mídia ocidentalizada se rebaixou. Não é sobre seu jornalismo, que sempre foi alinhado ao status quo que sustenta a ocupação israelense. Mas sobre ter aceitado a própria morte da liberdade de imprensa, sem reclamar.
Basta ligar a TV para escutar o noticiário sobre o extermínio de palestinos – e libaneses -, em lotes humanos sem história, contexto ou identidade – diferente dos israelenses, que têm rostos na mídia e deles sabemos que são amados por mães distantes. Neste 7 de outubro, muito será dito sobre as famílias com reféns em Gaza, e nada sobre as famílias dos milhares sequestrados por Israel.
Explodir pagers usados por pessoas em outro país, como no Líbano e Síria, virou ação contra o terrorismo na voz de âncoras de TV e não um Estado terrorista em ação, poupado de adjetivos.
Notícias de bombas em abrigos, hospitais e escolas são sempre acrescidas da suposição de que haveria algum terrorista no meio das vítimas bombardeadas. O genocídio foi embrulhado pela mídia hegemônica como um dano colateral.
A comunidade internacional, na prática, segue o mesmo script. Acabou este ano qualquer ilusão de que os seus instrumentos são eficazes, porque eles têm dono – e este é o mesmo que arma e financia o genocídio. Nunca se discutiu tanto, como nesta guerra, a necessidade da reforma da ONU, que não agiu para conter Israel. Ao contrário, suas agências viram matar seus médicos, enfermeiros, nutricionistas, junto com as pessoas que seus voluntários socorriam dos ataques israelenses.
Mais triste é a condição à qual a mídia ocidentalizada se rebaixou. Não é sobre seu jornalismo, que sempre foi alinhado ao status quo que sustenta a ocupação israelense. Mas sobre ter aceitado a própria morte da liberdade de imprensa, sem reclamar.
De outubro a outubro, foram 177 jornalistas assassinados. Estavam lá para ajustar o discurso à realidade. E quando foram assassinados, a grande mídia não se escandalizou. Não parou as máquinas. Não trocou suas reportagens não feitas por receitas de bolo ou páginas em branco. Tampouco as manchou de vermelho. Não ocupou a Casa Branca. Não tirou o microfone do assassino. Não apontou o dedo para Israel. Apenas registrou o recorde de jornalistas mortos em um ano na guerra, a despeito dos clamores da FIJ e seus sindicatos pelo mundo, das denúncias do Sindicato dos Jornalistas Palestinos, das investigações da Repórteres Sem Fronteiras e dos colegas dos assassinados. Continuou obedientemente a trocar a expressão “guerra contra os palestinos” por “guerra contra os terroristas do Hamas”, e agora contra os terroristas do Hezbollah. E deve continuar encaixando a expressão terrorista contra uma vizinhança de povos originários no Iêmen, na Síria, no Iraque e no Irã, que se aliam à resistência palestina.
O que seremos depois dessa experiência traumatizante? Esse pacote disruptivo pode atrasar a história pelo uso da força, da linguagem e das ameaças mais terríveis e nucleares que começam a ser normalizadas na ampliação da guerra. Ou acelerá-la pela mesma razão.
A humanidade é contumaz em criar resistência à opressão e mudar as coisas quando as condições são dadas. Ou melhor, conquistadas. A libertação da Palestina requer bem mais do que parar a guerra, barrar a ocupação e punir o genocídio. Implica mexer nas regras do jogo mundial.
Por isso, se existe um balanço do que foi este período de guerra e o que ele prenuncia, podemos dizer que foi principalmente um ano marcado pela força e espalhamento da resistência. Na Palestina e em todos lugares onde alguém se levantou em seu nome, desenhando uma convicção social planetária difícil de sufocar.
Como dizem os palestinos que resistem há décadas a todas as agressões e adversidades, a ponto de se converterem nessa questão global que rouba o sono de milhões: silencie uma voz e se ouvirão mil.
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