A fotografia da cidadã palestina Inas Abu Maamar, com o seu rosto enterrado na mortalha branca que cobria o corpo de sua sobrinha de cinco anos, Saly, foi registrada poucos dias após Israel deflagrar seu genocídio em Gaza.
A imagem registrada no Hospital Nasser de Khan Younis, em 17 de outubro do último ano, publicada pela agência Reuters, tornou-se um dos retratos mais vívidos do sofrimento do povo palestino na Faixa de Gaza, sob punição coletiva pelo exército de Israel.
Saly foi assassinada junto de sua mãe, seus avós, seu tio, sua tia, três primos e sua irmã, ainda um bebê. Desde então, Abu Maamar, de 37 anos, perdeu outra irmã, junto de quatro sobrinhos para um ataque aéreo israelense no norte de Gaza.
Em um ano, Abu Maamar se viu forçada a fugir dos bombardeios ao menos três vezes. Em uma ocasião, viveu quatro meses em uma tenda bastante precária.
Hoje, retornou a sua cidade, Khan Yunis, no sul de Gaza; todavia, ainda sob os temores de um novo bombardeio. Rachaduras tomam o barraco que a abriga, debaixo de um telhado de alumínio; uma cortina de chuveiro cobre um enorme buraco em sua parede.
“Perdemos toda a esperança”, afirmou Abu Maamar, sentada entre os escombros, em um pequeno cemitério improvisado a sua família. Debaixo dos escombros, comentou, está o túmulo de sua sobrinha. “Mesmo aqui, não está segura”.
Em 7 de outubro de 2023, após 17 anos de cerco militar contra Gaza e 75 anos de limpeza étnica e apartheid contra a Palestina histórica, grupos de resistência palestinos cruzaram a fronteira e capturaram colonos e soldados.
Israel alegou então que a operação transfronteiriça deixou 1.200 mortos — índices postos em dúvida mais tarde, com evidências de “fogo amigo” registradas pelo jornal israelense Haaretz e com o avanço de uma campanha de desinformação e propaganda de guerra no intuito de justificar sua expansão militar contra toda a região.
Desde então, a campanha de Israel em Gaza deixou 41.800 mortos, 97.100 feridos e dois milhões de desabrigados, sob cerco absoluto — sem comida, água ou medicamentos —, em meio à destruição indiscriminada da infraestrutura civil.
As agressões israelenses, a partir de 23 de setembro, voltaram-se ao Líbano, com dois mil mortos e sete mil feridos até o momento — a maioria em somente uma quinzena —, além de 1.2 milhão de deslocados à força.
Nesta conjuntura, parte considerável da comunidade internacional adverte há meses que apenas um cessar-fogo em Gaza — e agora no Líbano — pode evitar a deflagração de uma guerra regional.
Abu Maamar recordou os dias antes de outubro, com pouquíssimo trabalho disponível e importações ainda mais escassas. Analistas notam que Gaza, antes do genocídio, era um campo de concentração; em um ano, tornou-se um campo de extermínio.
Abu Maamar vivia com seu marido perto da família de seu irmão, Ramez, e passava muito tempo com suas sobrinhas, Saly e Seba, e seu sobrinho, Ahmed. Com os bombardeios, a família fugiu à casa de seu sogro, a cerca de um quilômetro de distância; não obstante, foi atingida apenas um dia depois.
Quando Abu Maamar soube da tragédia, correu ao Hospital Nasser. Então, encontrou seu sobrinho, Ahmed, de quatro anos de idade, e o agarrou pela mão, quando descobriu Saly, morta, no necrotério.
“Tentei acordá-la”, recordou a tia. “Não podia acreditar que ela estava morta”.
Foi então que Mohammed Salem, fotógrafo da Reuters, registrou a imagem, que venceu o Prêmio Pulitzer posteriormente.
O exército israelense jamais comentou o assassinato de Saly.
Seis dias depois, após matar outra família, em mais um ataque aéreo a Khan Younis, Israel ecoou aquele que se tornaria seu mantra, porém, sem provas: “O Hamas se entrincheirou entre a população civil; e onde quer que esteja o Hamas, atacaremos”.
Entre 7 e 17 de outubro — quando Saly e a família foram mortas —, Israel já havia matado três mil pessoas, incluindo 940 crianças. Um ano depois, estima-se 16.400 crianças entre as fatalidades, para além daquelas vitimadas pela fome.
Em dezembro, as mortes chegavam a 15 mil pessoas, com uma notável tendência de dois terços das fatalidades entre mulheres e crianças, à medida que Israel planejava expandir sua invasão por terra ao sul de Gaza — para onde as famílias haviam fugido.
Abu Maamar estava em Mawasi, uma área da orla mediterrânea repleta de tendas para os deslocados à força. Desde então, fugiu à cidade de Rafah, no extremo sul de Gaza, onde um milhão de refugiados se abrigavam, e novamente a Khan Younis.
De volta para a casa, Abu Maamar insiste não ter mais motivo para correr.
Um ano se passou. Abu Maamar, contudo, continua abraçada a um vestido preto, com o tradicional bordado palestino, o favorito de Saly — novamente apertado contra a face. Em luto, reafirma: “Estamos apenas esperando que pare essa chuva de sangue”.