As Nações Unidas publicaram ontem (11) um documento baseado em investigação minuciosa das práticas de Israel em Gaza que corroboram as denúncias de genocídio contra o povo palestino.
O relatório da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre o Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental e Israel, submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2024, aborda graves violações de direitos humanos por parte da ocupação israelense, que se intensificou a partir de 7 de outubro de 2023. O documento foca especialmente no impacto dessas ações sobre civis palestinos e suas instituições, com uma atenção particular às práticas israelenses nas áreas de saúde, detenção e o tratamento de reféns. (Leia o documento na íntegra, traduzido para o português, aqui ou ao final desta reportagem).
“As forças de segurança israelenses deliberadamente mataram, feriram, prenderam, detiveram, maltrataram e torturaram pessoal médico e veículos médicos alvos, constituindo os crimes de guerra de homicídio doloso e maus-tratos e o crime contra a humanidade de extermínio”, concluiu a comissão.
Contexto e Metodologia
A Comissão de Inquérito aplicou rigorosos métodos de investigação, incluindo a coleta de milhares de fontes abertas e entrevistas com vítimas, testemunhas e especialistas. O relatório destaca que o território da Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental continua sob ocupação militar israelense, conforme o Direito Internacional Humanitário, especialmente a Quarta Convenção de Genebra. Apesar dos pedidos formais de informação, o governo israelense se recusou a colaborar com a investigação.
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Ataques a Instalações Médicas e Profissionais de Saúde
Entre 7 de outubro de 2023 e julho de 2024, Israel realizou 498 ataques a instalações de saúde na Faixa de Gaza, resultando em 747 mortos e 969 feridos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 110 dessas instalações sofreram impactos diretos. Além de ataques aéreos, as forças de segurança israelenses cercaram hospitais, impediram o acesso de ajuda humanitária e, em alguns casos, emitiram ordens de evacuação que eram impossíveis de serem cumpridas em segurança.
“Enquanto as forças de segurança israelenses emitiram ordens de evacuação para esses hospitais, a Comissão concluiu que as ordens não eram viáveis, não foram emitidas de forma coordenada e não poderiam ser implementadas de forma segura. Elas deram pouco tempo às administrações hospitalares — apenas algumas horas, em alguns casos — para evacuar centenas de pacientes. As forças de segurança israelenses não auxiliaram na evacuação segura dos pacientes. De acordo com várias fontes, evacuações completas não foram possíveis sem colocar em risco a vida dos pacientes”, denuncia o relatório. Ele continua: “no Hospital Awdah e no Hospital Pediátrico Nasr, as forças de segurança israelenses negaram solicitações da equipe médica para facilitar a movimentação de ambulâncias a fim de tornar o processo de evacuação mais tranquilo, resultando em condições inseguras para a evacuação. Os pacientes nesses hospitais, em particular aqueles que estavam em unidades de terapia intensiva e aqueles que estavam gravemente feridos, exigiram cuidados especiais durante a movimentação.”
Relatórios indicam que os ataques visaram hospitais de maneira sistemática, começando no norte de Gaza e se estendendo ao longo do território. A justificativa do governo israelense era que o Hamas estaria utilizando hospitais para fins militares, como bases de comando e controle, o que foi negado pelas autoridades de saúde locais e por testemunhas.
A destruição de hospitais e a morte de 500 profissionais de saúde agravaram ainda mais a situação da já frágil infraestrutura médica de Gaza. Ao final de julho de 2024, apenas 16 dos 36 hospitais da região ainda funcionavam, de forma parcial. O sistema de saúde entrou em colapso devido à falta de medicamentos, combustível, eletricidade, água potável e saneamento, causando um aumento significativo de mortes evitáveis, especialmente entre pacientes com doenças crônicas e mulheres grávidas. Muitos hospitais, como o Shifa e o Nasr, também foram usados como abrigos para civis deslocados, exacerbando a sobrecarga nas instalações.
Interferência na Saúde Reprodutiva e Infantil
O impacto sobre a saúde reprodutiva foi devastador. Mais de 540 mil mulheres em idade reprodutiva foram afetadas pela falta de atendimento adequado. O bombardeio de hospitais especializados, como o Awdah e o Hospital Turco-Palestino, deixou milhares de mulheres sem acesso a serviços essenciais de pré-natal e pós-parto, além de cuidados com recém-nascidos. Alguns desses hospitais também serviam como os únicos centros de oncologia na região, o que interrompeu o tratamento de cerca de 10.000 pacientes com câncer, levando muitos à morte.
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As condições para os cuidados infantis também se deterioraram drasticamente. Muitos hospitais pediátricos foram atingidos ou ficaram inacessíveis, forçando crianças a serem tratadas em instalações menores e inadequadas. Casos de desnutrição entre crianças aumentaram significativamente, com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) relatando que cerca de 3.000 crianças estavam em risco de morte devido à fome em julho de 2024. O colapso do sistema de vacinação deixou crianças vulneráveis a doenças como a poliomielite, com o primeiro caso em 25 anos sendo relatado em agosto de 2024.
Detenção Arbitrária e Tortura de Palestinos
O relatório destaca a detenção de mais de 14.000 palestinos, a maioria deles em Gaza e na Cisjordânia. Entre os detidos, estavam médicos, trabalhadores humanitários, jornalistas, crianças e ativistas de direitos humanos.
Relatos de maus-tratos durante as detenções são generalizados, incluindo espancamentos, humilhações sexuais, ameaças de morte e até abusos físicos graves que resultaram em fraturas.
“Vários detentos do sexo masculino relataram que agentes das forças de segurança israelenses espancaram, chutaram, puxaram ou apertaram seus órgãos genitais, muitas vezes enquanto os detentos estavam nus. Em alguns casos, agentes das forças de segurança israelenses usaram objetos como detectores de metais e cassetetes. Um detento que foi mantido na prisão de Negev, de agentes das forças de segurança israelenses, declarou que, em novembro de 2023, membros da unidade Keter do Serviço Prisional de Israel o forçaram a se despir e então ordenaram que ele beijasse a bandeira israelense. Quando ele se recusou, ele foi espancado e seus órgãos genitais foram chutados tão severamente que ele vomitou e perdeu a consciência.”
Alguns detidos foram forçados a servir como escudos humanos para as forças israelenses durante operações militares. No campo de detenção de Sde Teiman, os prisioneiros eram mantidos em condições degradantes, obrigados a usar fraldas, privados de sono e submetidos a tortura física e psicológica. Há também relatos sobre a privação de necessidades básicas, como comida e acesso a saneamento.
“A Comissão também recebeu informações confiáveis sobre estupro e agressão sexual, incluindo o uso de uma sonda elétrica para causar queimaduras no ânus e a inserção de objetos, como paus, cabos de vassoura e vegetais, no ânus.”
Crianças palestinas detidas foram submetidas a tratamentos cruéis semelhantes. Muitos menores relataram ter sido mantidos com adultos e sofrido espancamentos, isolamento e intimidações graves, incluindo ameaças de abuso sexual. Um jovem de 15 anos descreveu seu tempo de detenção como “os piores dias de sua vida”. Diz o relatório: “suas pernas foram algemadas com correntes de metal e suas mãos algemadas com tanta força que sangraram, mas ele não recebeu nenhum atendimento médico. Ele foi repetidamente punido sendo forçado a ficar de pé com as mãos levantadas por horas.”
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Mortes em Custódia
Pelo menos 53 prisioneiros palestinos morreram sob custódia israelense entre outubro de 2023 e julho de 2024. As circunstâncias dessas mortes sugerem falta de cuidados médicos e maus-tratos graves, com evidências de que muitos detidos não receberam assistência médica adequada após serem feridos durante a detenção. A falta de transparência em investigações dessas mortes é uma preocupação séria levantada no relatório.
Uso de Hospitais para Fins Militares
Embora Israel tenha alegado que hospitais em Gaza estavam sendo usados por grupos armados como bases militares, o relatório da Comissão afirma que não foram encontradas evidências concretas que sustentassem essas afirmações. Médicos e trabalhadores de saúde entrevistados pela Comissão negaram veementemente o uso de suas instalações para operações militares, e muitos relataram que estavam sendo usados apenas para tratar vítimas e doentes.
“A Comissão entrevistou pessoal médico sênior em hospitais e eles negaram que houvesse qualquer atividade militar, enfatizando que a única função dos hospitais era tratar pacientes”, diz o relatório.
Impacto Humanitário e Coletivo
O relatório conclui que as ações israelenses representam uma política deliberada de destruição da infraestrutura civil em Gaza, com efeitos desastrosos sobre a população palestina. A Comissão considera que essas ações violam o direito internacional humanitário, constituindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade, ao privar a população de Gaza de seus direitos mais básicos, como o direito à saúde, à segurança e à vida.
“Os maus-tratos de detidos palestinos pelas autoridades israelenses são o resultado de uma política intencional. Atos de violência física, psicológica, sexual e reprodutiva foram perpetrados para humilhar e degradar os palestinos. (…) As forças de segurança israelenses cometeram esses atos com a intenção de infligir dor e sofrimento, equivalendo à tortura como um crime de guerra e um crime contra a humanidade e constituindo uma violação da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. As mortes de detidos como resultado de abuso ou negligência equivalem aos crimes de guerra de homicídio doloso ou assassinato e violações do direito à vida.”
A comissão também conclui:
“Os detidos do sexo masculino foram submetidos a estupro, o que é um crime de guerra e um crime contra a humanidade. Tais atos de violência sexual, causando severo sofrimento físico e mental, também equivalem a tortura”
Leia a íntegra da tradução do documento:
Publicado originalmente em FEPAL