O último ano de implacável genocídio de Israel contra os palestinos de Gaza e sangrentas incursões na Cisjordânia tem sido visto, sobretudo, em termos de suas mais aterradoras ramificações humanitárias: o assassinato sem igual de dezenas de milhares de mulheres, homens e crianças; a obliteração de Gaza; as demolições e a devastação na Cisjordânia.
Embora a urgência humanitária seja, de fato, prioridade, outros fatores também merecem consideração, especialmente ao superarmos, nesta última semana, a marca do primeiro aniversário de um genocídio ainda em curso. Mesmo que o assassinato em massa ainda persista, podemos assumir diversas conclusões sobre suas implicações de longo prazo.
Para começo de conversa, os palestinos, apesar da ocupação, do cerco e dos numerosos fracassos de suas lideranças, permanecem como agentes políticos, com voz e autonomia bastante poderosas. Sua voz não nasce de conquistas superficiais de seus autocratas, ou de um reconhecimento simbólico do Estado da Palestina, mas da resiliência coletiva e do poder dos palestinos comuns não apenas em Gaza como em todo o país.
A guerra em Gaza poderia assumir formas completamente distintas caso a sociedade e o povo da Palestina tivesse se resignado, diante de uma máquina de guerra poderosíssima; se fragmentado em facções em conflito; ou se desesperado sob pressões impossíveis de compreender, incluindo a guerra, a fome e a destruição. O fato de que nada disso ocorreu já é, por si só, alentador.
O destino do povo palestino não é a marginalização, o apagamento ou o esquecimento — mas sim sobrevivência e prosperidade.
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Ademais, as sociedades árabes, por mais que se consumam por suas próprias disputas e desafios políticos e sociais, continuam unidas em perceber a causa palestina como uma prioridade coletiva. É isso que coagiu os governos árabes a reafirmar sua posição sobre a centralidade da causa palestina, em vez de abandoná-la.
Embora as circunstâncias correntes possam, por ora, impedir algumas das sociedades do chamado mundo árabe de transformarem abertamente sua devoção à Palestina em apoio prático e tangível, o futuro deve mostrar que a renovada centralidade da Palestina entre os discursos e a opinião pública da região terá certamente seu peso e seu valor.
A mesma lógica se aplica à comunidade islâmica global — ou Ummah — que, em questão de décadas, jamais esteve tão unida como está agora, sobre a Palestina. Podemos sentir isso em todos os países de maioria islâmica e entre comunidades muçulmanas de todo o mundo — sobretudo no Ocidente.
O futuro deve nos elucidar melhor o que significa este retorno da Palestina aos braços de árabes e muçulmanos. Contudo, já podemos concluir que a resiliência do povo palestino mais uma vez transcendeu sua terra e seus direitos a uma verdadeira força motriz para os povos árabes e islâmicos.
Enquanto alguns regimes árabes tentam desesperadamente se distanciar do problema — ou lavar as mãos sobre Gaza —, agentes não-estatais no Iêmen, Líbano, Iraque e outros desafiam as regras tradicionais da política do Oriente Médio. As massas árabes não mais imploram cegamente a seus exércitos para que salvem os palestinos, como em ocasiões passadas. Os papeis do Ansar Allah — os houthis — no Iêmen e o Hezbollah no Líbano, ao que parece, preencheram lacunas que, em teoria, seriam preenchidas por contingentes tradicionais. De tais regimes, nada se espera, tampouco — francamente — se pede.
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Os exércitos oficiais do mundo árabe se revelaram pela história corruptos ou ineficientes. Agora, são meros espectadores à medida que poderosos grupos armados lhe preenchem os espaços, ao expressar solidariedade aos palestinos não apenas no discurso, como em suas ações. Trata-se de algo sem precedentes — uma mudança que pode minar, de uma vez por todas, a legitimidade que ainda se apega aos regimes árabes; sobretudo aqueles nos arredores imediatos da Palestina ocupada.
Podemos notar ainda que, embora a lei internacional permaneça ineficaz como sempre, a guerra sanguinária na Palestina já cria fissuras dentre o Sul e o Norte Global. Este — salvo pouquíssimas exceções — permanece determinado em repetir velhos mantras cansados sobre o direito de Israel de “se defender”, enquanto insistem em ignorar todos os direitos do povo palestino. Todavia, muitos países da África, Oriente Médio, América do Sul e além se mostraram cada vez mais ousados e eloquentes em suas reivindicações por justiça ao povo palestino e pela igualdade de aplicação da lei internacional.
A revolta política do Sul Global já resultou em ações vagarosas — porém contundentes — assumidas pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), Tribunal Penal Internacional (TPI) e, mais recentemente, Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Esta aprovou, em 17 de setembro, um cronograma inédito para que a ocupação israelense na Palestina chegue ao fim. A Resolução A/ES-10/L.31/Rev.1 e seu prazo de “não mais que 12 meses” essencialmente invalida todas os avanços que Israel conduziu ilegalmente nos territórios palestinos ocupados nas últimas décadas, incluindo seus assentamentos e a anexação e expropriação de terras palestinas.
Além disso, toda uma geração em todo o mundo se viu afetada pelos horrores de Gaza. As imagens gráficas, os apelos desesperados de crianças órfãs, a inconcebível devastação e o fracasso do sistema internacional para parar tudo isso já se gravou na memória coletiva do planeta.
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Isso significa que as fronteiras da solidariedade global para com o povo palestino, enfim, não existem mais, ao transcender seus confinamentos do Oriente Médio a espaços novos e crescentes tanto em âmbito geográfico quanto cultural. Ao menos no mundo ocidental, a Palestina não é mais simplesmente um debate ou assunto político ou acadêmico.
Esta nova consciência global que se desenvolveu em torno da luta do povo palestino pode já ter conquistado a massa crítica requerida que, com o tempo, resultará na tão almejada mudança de paradigma: justiça e liberdade para o povo palestino.
Por fim, um ano de guerra e genocídio nos ensinou que, embora o poder de fogo superior possa determinar decorrências políticas a curto prazo, nenhuma arma ou munição será capaz de derrubar a vontade de uma nação, que prometeu a si e ao mundo restaurar sua dignidade e sua liberdade — seja como for, não importa o que aconteça.
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