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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Minha irmã, a 166ª médica assassinada por Israel na Faixa de Gaza

Dra. Soma Baroud, morta em 9 de outubro dentro de um táxi bombardeado por aviões de guerra israelenses, em Khan Younis, em Gaza [Reprodução/Redes sociais]

“Suas vidas continuarão. Com novos eventos e novos rostos. São os rostos de seus filhos, que encherão suas casas de barulho e alegria”. Estas foram as últimas palavras de minha irmã, por mensagem de texto, a uma de suas filhas.

A dra. Soma Baroud foi assassinada em 9 de outubro dentro de um táxi — junto de outros cidadãos exaustos — por um ataque aéreo israelense, em uma área próxima da travessia de Bani Suhaila, perto de Khan Younis, no sul de Gaza.

Ainda não sei se ela estava a caminho do hospital, onde trabalhava, ou se deixava o posto a caminho de casa. E isso importa?

A notícia de seu assassinato — que, por definição, é um assassinato político, dado que Tel Aviv alvejou e matou deliberadamente 986 profissionais de saúde, incluindo 166 médicos — chegou por uma imagem de sua página do Facebook: “Atualização: Estes são os nomes dos mártires do último bombardeio de Israel a dois táxis em Khan Younis”. Então a lista de nomes, sendo o quinto, minha irmã: Soma Mohammed Mohammed Baroud — a vítima de número 42.010 entre os palestinos assassinados em Gaza.

Recusei-me a acreditar nas notícias, mesmo quando mais postagens começavam a surgir nas redes sociais, sempre a listando como a número cinco, às vezes seis, entre os novos mártires de Khan Younis.

Tentei telefonar, uma e outra vez, na esperança de que a linha crepitasse um pouco; então um breve silêncio e sua voz gentil: “Marhaba Abu Sammy. Como você está, meu irmão?”. Mas ela jamais me atendeu.

Eu disse a ela, em mais de uma ocasião, que não precisava se preocupar em dar detalhes por texto ou áudio, dados os apagões de internet e energia elétrica. “Toda manhã, apenas digite: Estamos bem”. É tudo que eu lhe pedi.

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Ainda assim, ela não conseguia me escrever por dias, sobretudo pela falta de conexão de internet. Então, chegava uma mensagem, embora nunca breve. Deixava seu pensamento fluir, ao associar sua luta diária para sobreviver a seus medos de criança, poemas, versos do Alcorão, seus livros favoritos e assim por diante.

“Sabe? O que você me disse da última vez fez eu me lembrar de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez”, escreveu minha irmã, em certa ocasião, ao levar nossa conversa a reviravoltas filosóficas. Eu ouvia e ouvia e lhe dizia: “Sim … concordo totalmente … Cem porcento”.

Para nós, Soma era maior do que a vida. É precisamente por isso que sua ausência súbita nos chocou ao ponto da descrença. Seus filhos, embora crescidos, agora estão órfãos. E seus irmãos — eu incluso — sentem o mesmo.

Escrevi sobre Soma como personagem central em meu livro Meu pai, um combatente da liberdade, porque de fato ela era central em nossas vidas e, sobretudo, em nossa própria sobrevivência em um campo de refugiados de Gaza.

A primogênita e única filha, Soma teve de carregar muito mais expectativas que o resto de nós. Era somente uma criança quando meu irmão mais velho, Anwar, ainda bebê, faleceu em uma clínica das Nações Unidas no campo de refugiados de Nuseirat, devido à falta de medicamentos. Então, conheceu a dor — um tipo de dor que, com o tempo, converteu-se em um estado permanente de luto, que jamais a abandonaria — até seu assassinato por uma bomba fornecida a Israel pelos Estados Unidos.

Dois anos após a morte de Anwar, outro menino nasceu, de mesmo nome, com o destino de carregar o legado que seria do primeiro. Soma acolheu o novo bebê, ao alimentar junto dele uma conexão especial por décadas a fio.

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Meu pai começou a trabalhar ainda criança — mais tarde, tornou-se um combatente do Exército de Libertação da Palestina e, então, policial sob a gestão egípcia de Gaza. Outra vez, virou trabalhador, ao se negar a colaborar com a polícia financiada por Israel após os reveses, ou Naksa, de 1967, quando a ocupação se expandiu a Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia.

Meu pai era um homem astuto e digno, um intelectual autodidata. Fez de tudo para prover dignidade a sua pequena família. E Soma, ainda criança, muitas vezes descalça, seguiu a seu lado a cada um de seus passos. Quando meu pai se viu forçado a se tornar mascate, ao comprar itens descartados por Israel e revendê-los no campo de refugiados, foi Soma que passou a ajudá-lo. Desde então, conviveu com pequenas cicatrizes na ponta de seus dedos, por embalar milhares de giletes individualmente, como uma recordação da difícil vida que teve.

“O dedo mindinho de Soma vale mais que mil homens”, repetia meu pai a nós — os cinco meninos —, ao compartilhar uma imagem da heroína da família. Hoje, Soma é um mártir, mas seu legado está conosco para toda a eternidade.

Anos depois, meus pais a enviaram a Aleppo para que se formar em medicina. Contudo, retornou a Gaza, onde passou três décadas dedicada a curar a dor dos outros — embora jamais tenha conseguido sanar suas dores próprias.

Soma trabalhou nos hospitais al-Shifa e Nasser, entre outros. Mais tarde, obteve mais um diploma em saúde da família e abriu sua própria clínica. Soma não cobrava dos pobres e fez de tudo para tratar daqueles vitimados pela guerra.

Soma fez parte de uma geração de médicas de Gaza, mulheres, que mudaram seu campo de trabalho. Coletivamente, trouxeram importante ênfase nos direitos das mulheres aos cuidados de saúde e expandiram o entendimento da medicina familiar para abranger os traumas, sobretudo, dada a vulnerabilidade das mulheres em um contexto de guerra.

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Quando minha filha, Zarefah, conseguiu visitá-la em Gaza, pouco antes de ser deflagrado o genocídio em curso, ela me disse: “Quando a tia Soma entra no hospital, as mulheres a cercam em admiração — médicas, enfermeiras e outras trabalhadores”.

A certa altura, parecia que todo o sofrimento de Soma afinal havia dado resultados: uma boa casa para sua família em Khan Younis, um pequeno pomar de oliveiras, palmeiras; um marido que a amava, professor de direito e, mais tarde, reitor na renomada Universidade de Gaza; três filhas e dois filhos, cujas formações foram de odontologia a farmácia, direito a engenharia.

E mesmo sob o cerco, a vida — para Soma e sua família — parecia ligeiramente maleável. Verdade, ela não poderia deixar Gaza devido ao bloqueio. Assim, não tínhamos a chance de desfrutar de sua presença por anos a fio. Verdade, ela era atormentada pela reclusão e a solidão — daí seu caso de amor com a obra de Gabriel García Márquez. Mas seu marido não fora morto ou sequestrado. Sua casa e sua clínica permaneciam de pé. Soma vivia e respirava, e nos comunicava seus pequenos tesouros filosóficos — sobre a vida, memória e esperança. Quando então…

“Se eu pudesse ao menos encontrar os restos de Hamdi, para lhe dar um enterro digno”, me escreveu em janeiro, quando as notícias circularam de que seu marido fora executado por um drone israelense em Khan Younis. Seu corpo não foi encontrado e, portanto, Soma mantinha uma tênue esperança de achá-lo com vida. Seus filhos, por outro lado, seguiam a escavar os escombros de onde Hamdi foi atacado, para poder apenas sepultar o pai. Os filhos do casal, agora enlutados, eram frequentemente atacados por drones israelenses, em meio ao trabalho de remexer a terra em busca do pai morto. Então fugiam, e voltavam com pás para dar continuidade a tão sinistra tarefa.

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Para elevar ao máximo suas chances de sobrevivência, a família de minha irmã decidiu se dividir entre os campos aos deslocados internos de Gaza e outras casas de família. Soma vivia, assim, em um estado constante de mudança, de viajar longas distâncias a pé, entre cidades, aldeias e campos de refugiados, para ter certeza de que seus filhos continuavam bem, após um e outro massacre.

“Estou exausta”, ela repetia. “Tudo que eu quero da vida é que essa guerra termine — um pijama confortável, meu livro favorito, uma cama macia”. Expectativas simples, razoáveis, que pareciam uma miragem, sobretudo quando sua casa, no distrito de Qarara, em Khan Younis, foi atacada e demolida por forças israelenses no mês passado. “Meu coração dói. Tudo se foi. Três décadas de vida, de lembranças, de conquista — tudo destroços”, Soma me disse.

Soma destacou, porém, que não se tratava dos tijolos e concreto. “É muito mais que isso. É uma história que não pode ser contada totalmente, não importa o quanto eu fale ou eu escreva. Sete almas viveram ali. Comemos, bebemos, rimos, brigamos. E apesar de todos os desafios de viver em Gaza, conseguimos ser felizes”.

Alguns dias antes de ser morta, Soma me contou que estava dormindo em um prédio em ruínas pertencente a seus vizinhos, em Qarara. Soma me mandou uma foto registrada por seu filho, sentada em uma cadeira improvisada sobre a qual dormia entre os escombros. Minha irmã parecia cansada — muito cansada.

Não havia nada que eu poderia lhe dizer para convencê-la de sair. Soma insistia em não tirar seus olhos das ruínas de sua casa. Eu mesmo não poderia compreendê-la. Pedi que saísse, mas não fui atendido. Em lugar disso, me mandava fotos de pequenas coisas que havia resgatado — um velho retrato, um ramo de oliveira, uma certidão de nascimento…

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Minha última mensagem a minha irmã, horas antes de ser assassinada, foi uma promessa — de que quando a guerra terminasse eu faria de tudo em meu poder para compensá-la. Que toda a família se reuniria no Egito, ou na Turquia, e que a encheríamos de presentes e um amor que não conhece limites. “Vamos planejando”, concluí. “Tudo o que você quiser. Apenas diga. Aguardo instruções”. Mas ela jamais viu minha mensagem.

Mesmo quando seu nome — mais outra baixa entre o genocídio israelense em Gaza — foi mencionado no noticiário local, recusei-me a acreditar. Não parei de telefonar. “Por favor, Soma, minha irmã, atenda”, eu implorava à linha.

Foi apenas quando eu vi um vídeo de mortalhas brancas chegando no Hospital Nasser, de ambulância, que comecei a entender que minha irmã, talvez, havia ido embora. Algumas das mortalhas tinham nomes marcados de outras vítimas citadas nas redes sociais. Cada uma era posta cuidadosa e separadamente sobre o chão. Familiares em luto — homens, mulheres e crianças — seguiam a abraçar o corpo, aos gritos de agonia e desespero que marcam o genocídio desde o primeiro dia.

Então, outra mortalha: “Soma Mohammed Mohammed Baroud”, escrito sobre o plástico branco. Seus colegas a ergueram gentilmente do chão. Estavam prestes a abrir a mortalha para confirmar sua identidade — no entanto, não pude olhar. Recusei-me a vê-la de uma forma que ela não queria ser vista. Soma era uma mulher forte, manifestação do amor, da generosidade e da sabedoria. Alguém cujo mindinho, valia mais do que mil homens.

Então porque insisto em checar minhas mensagens na esperança de receber algo dela — de que me diga que foi tudo um erro enorme e cruel, que ela está bem?

Minha irmã Soma foi enterrada sob um montinho de terra, em algum lugar de Khan Younis.

Já não recebo mensagens dela.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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