Ao contrário da maioria dos artigos que escrevo para este portal, dessa vez não se trata de uma análise política de fato singular, mas um texto teórico hipotético. Entende-se teoria como um conjunto de conceitos coerentemente articulados entre si, que elabora questões concretas superando a mera retórica. Ou seja, teoria é para atuar na realidade. No caso, o debate teórico aqui apresentado questiona a nós mesmos, descendentes de árabes e partícipes da cidadania brasileira. Precisamos fazer o debate: qual o papel que podemos ter nos destinos do país? Reforço a ideia-guia. Não questiono o papel como “individualidades fragmentadas”, mas como coletividade em reconfiguração acelerada.
Estamos diante de um genocídio a olhos vistos cometidos pelo Estado israelense e com financiamento direto dos Estados Unidos. Comparativamente, é como assistir as câmaras de gás na Shoah da 2ª Guerra Mundial e ver este crime de lesa-humanidade ser sustentado pela maior potência ocidental do período. Qualquer semelhança não é nenhuma coincidência. Diante desta evidência, nos cabe repetir a pergunta: somos mais de 16 milhões de brasileiras e brasileiros de ascendência árabe; o que devemos fazer?
Considerando que deste universo mais de 92% somos levantinos, temos origem no Bilad al-Sham, logo os ataques aos territórios contra o Líbano, a Síria e a Palestina nos unem — ou deveriam nos unir. Uma comparação possível é imaginar que na década de 1980, já tivéssemos no Brasil uma consolidade classe média afro-brasileira. E, na formação de consciência desta parcela da cidadania, a indignação contra o apartheid praticado na África do Sul polarizasse os debates e os sentidos de pertencimento destas dezenas de milhões de pessoas. É isso o que está ocorrendo neste momento. Desde famílias de primeira ou segunda geração, ainda com parentes na terra de origem, até gerações já totalmente “assimiladas” ao Ocidente — tendo a “sorte” de ser socialmente brancas —, a guerra contra o povo palestino polariza nossas consciências.
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Podemos afirmar que o momento é de efervescência e indignação. A primeira reação é a propaganda antissionista. Dezenas de milhares de brimos e brimas tentam romper a censura e o bloqueio da hegemonia sionista, reproduzida pelos conglomerados de mídia no Brasil como se fossem um aparelho de propaganda do Departamento de Estado. Brotam comitês de apoio à causa palestina em todo o país; há um reforço na imagem das maiores entidades árabes, que se organizam transmissões ao vivo na internet praticamente todos os dias; e portais como este lideram a audiência na internet anti-imperialista.
Dito isso, parece que estamos bem, certo? Ainda não.
A indignação nos organiza: A maioria da população apoia a Palestina
O Brasil de 2024 já tem um a cada cinco adultos como adepto de alguma denominação evangélica, neopentecostal ou neocalvinista. Infelizmente, as grandes lideranças — os “coronéis da fé” — são apoiadoras do sionismo, defensoras do Estado de Israel e de seu direito supostamente divino de massacrar os povos originários na Palestina ocupada. Ao mesmo tempo, uma boa parcela desses fiéis estão descontentes, levando ao número aproximado de 11 milhões de “desigrejados”, isto é, pessoas que romperam com suas lideranças religiosas justamente pelo giro para a extrema-direita e o incentivo ao Apartheid colonial.
Além da base evangélica com suas dissidências, a opinião pública brasileira está bem distante da lavagem cerebral promovida pelo lobby do inimigo, o oligopólio midiático e a presença de operadores dentro do capital financeiro e áreas afins. Deste modo, temos mais de 70% de apoio da população brasileira, que manifesta alguma forma de apoio à Palestina e deseja o fim da dominação estrangeira em nossos territórios de origem.
Ainda assim, não basta. É impossível entender-se como uma coletividade em diáspora se o vínculo se organiza apenas como apoio de uma luta ainda distante. Tampouco nossas coletividades se resumem a minorias políticas idealizadas como laicas, panarabistas e vinculadas às ideias mais progressistas. A realidade é mais complexa, e os núcleos dinâmicos da diáspora são mais vinculados à expansão do Islã no país, tanto xiitas e sunitas, em especial em São Paulo e Foz do Iguaçu. Além do polo de dinamismo, temos milhões de cidadãos isolados que retomam sua consciência e sentido de pertencimento, se dando conta dia após dia dos horrores do Ocidente em sua pretensão colonialista.
Para além da indignação: Qual projeto de país comporta nossas demandas?
Se há algo que pode nos unir, além de apoiar a luta pela libertação da Palestina — do rio ao mar —e a soberania do Líbano e da Síria, é fazermos parte de um projeto de país que possa vir a se opor ao imperialismo dos Estados Unidos. Qualquer estudo básico de geopolítica do norte hegemônico afirma que: “O Brasil já é grande demais em inércia para ficar maior ainda em movimento”. Outra constatação é: “Para onde vai o Brasil irá a América do Sul e talvez toda a América Latina”.
Se depender de Washington e a parcela majoritária da classe dominante deste país, jamais deixaremos de ser uma mescla de cassino financeiro, fazenda de plantation e mineração a céu aberto. Ou seja, nosso “destino manifesto” seria servir de plataforma primário exportadora para atender o mercado mundial. O máximo que podemos pretender — por essa lógica da dominação — é ser parte do fluxo comercial da Ásia, sob liderança chinesa, e tentar algumas oportunidades no mercado mundial de commodities diante da nova bipolaridade.
Ou seja, não poderemos ter, como país, uma retomada industrial, nem a preservação dos biomas e tampouco o aproveitamento para desenvolver a indústria de fármacos e patentes científicas. O Brasil seria (é) um gigante com pés de barros, onde a mentalidade colonialista atravessa os controladores do rentismo, financiamento do agronegócio e os grupos de interesse fazendo lobby dentro do governo federal. Infelizmente, a alta cúpula das Forças Armadas se mostrou pouco ou nada confiável diante da defesa da democracia e a soberania popular. O recente (des)governo de Jair Bolsonaro — aliado estratégico do sionismo e do próprio Netanyahu — provou que a mescla de entreguismo, interesse corporativo e subalternidade diante de Washington e Tel Aviv é gigantesca.
É impossível apoiar qualquer presença, projeção de poder ou convivência “pacífica” com o inimigo sionista e seu financiador imperialista no Brasil. No Sistema Internacional, nosso país deve ser um pilar da multipolaridade e abrir relações de cooperação e complementaridade com o chamado Sul Global. Especificamente, o desenvolvimento econômico através dos Brics é um caminho viável e obviamente, passível de sabotagem e desestabilização sionista e dos Estados Unidos.
O raciocínio lógico aqui expresso está muito distante da realização. O Brasil não tem uma classe dominante e nem elites dirigentes com vocação de poder mundial. O reforço de uma posição não subordinada a Washington automaticamente gera conflito nas entranhas do aparelho de Estado e os lobbies de interesse colonial. Qualquer ação no sentido contrário chama a atenção da espionagem inimiga e seus porta-vozes operando no país.
Logo, nós, brasileiras e brasileiros de origem árabe e apoiadores da luta anticolonial não temos como ser parte de um projeto subalternizado de país. Pode até parecer um chavão ou panfleto, mas é simples assim. Apoiar a libertação da Palestina a partir do Brasil é lutar por um país soberano e necessariamente inserido nas relações Sul–Sul, bastião da multipolaridade.
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