Mohamed Gharred é um jovem político tunisiano com laços com a sociedade civil canadense, ex-membro do proeminente partido Ennahda, da Tunísia. O relacionamento de Gharred com o partido islâmico moderado surgiu pouco depois da revolução, como ativista e estudante em Montreal, ajudando seus conterrâneos no Canadá. Em 2014, aos 24 anos, Gharred se envolveu com o trabalho de base do partido, primeiro como diretor de comunicação na região de Nabeul, responsável pela coordenação de campanha de políticos de destaque, como Meherzia Labidi e Bouthaina Ben Yaghlan.
A partir de então, Gharred vivenciou uma rápida ascensão na hierarquia partidária. Após ajudar a liderar uma campanha interna por reformas anunciadas no 10º Congresso do Ennahda, em 2016, a fim de transformá-lo de um movimento islâmico a um partido civil, Gharred se tornou assessor de relações internacionais, cargo que manteve até renunciar em 7 de junho de 2019.
Nossa conversa com Gharred, sobre as razões de sua renúncia, trazem à luz aspectos interessantes da dinâmica interna do influente partido tunisiano.
Veja a seguir nossa entrevista:
Bom dia, sr. Gharred. Quando o sr. renunciou do Ennahda, em junho de 2019, o sr. afirmou, em sua página do Facebook, que fez isso “por razões que prefiro, por enquanto, guardar para mim mesmo”. Estaria disposto a se abrir agora?
Eu não fiz comentários à imprensa na ocasião porque estávamos às vésperas das eleições de 2019 e eu não queria que meu legado no partido se tornasse apenas uma espécie de oposição por cálculo político. Havia questões concretas que me preocupavam e eu queria falar sobre elas de maneira franca. Então, decidi esperar alguns anos.
Quão próximo o sr. era do círculo de Rached Ghannouchi? E como chegou lá?
Eu não era parte de círculo algum, dentro do Ennahda, entre os anos de 2011 e 2014. Eu tinha alguns amigos que trabalhavam na sede, ou amigos dos meus pais. No entanto, isso mudou com a minha participação na base para as eleições de 2014. Havia uma corrente dentro de nosso partido, bastante fechada e ideologizada, conhecida como “as águias”. Eu mesmo estava descontente com sua agressividade, particularmente em um momento de polarização. Eu temia que essas pessoas nos levassem novamente à clandestinidade. Logo após as eleições, entendi que não conseguiria trabalhar com eles. E entendi que só conseguiríamos avançar nas reformas que o partido tanto precisava caso os deixássemos de lado. Na época, Rached Ghannouchi era precisamente o homem que buscava contrapor essa corrente. É por isso que tentei me conectar com as pessoas que lhe eram próximas e consegui contactar uma de suas filhas. Foi um encontro muito bom. Ela tinha a cabeça aberta, uma mentalidade moderna e progressista sobre como fazer as coisas. Ela me apresentou a outra de suas filhas, com o mesmo perfil. A partir de então, comecei a visitar a família e seus escritórios com certa frequência. Parecia que estávamos avançando de algo mais arcaico e fechado a um Ennahda mais aberto, mais progressista. Então, havia dois centros de poder dentro do partido: ou você estava com o círculo de Ghannouchi — e não poderia fazê-lo sem se aproximar da família — ou estava junto dos chamados al tandhim, o establishment ou “as águias”, que costumavam pensar como a Irmandade Muçulmana. Eu escolhi aqueles com quem compartilhava valores em comum. Mesmo que discordássemos de alguns membros da família, eu acreditava que suas filhas teriam um lugar na política sem Ghannouchi. Eram mulheres francas e honestas em sua vontade de reformar o partido.
O sr. disse muitas vezes na imprensa que fazia parte da corrente reformista do Ennahda. O que isso significa?
A corrente reformista é formada por aqueles que não têm a mesma mentalidade da Irmandade Muçulmana. Aqueles que lutaram duro durante o 10º Congresso para aprovar as reformas do partido, sobretudo o trabalho de divulgação islâmica relacionado às ongs. Discordávamos das “águias” não apenas em suas ideias, como seus métodos. Queríamos que o Ennahda se afastasse definitivamente de uma mentalidade ou funcionamento sectários, para se tornar um partido moderno e eficaz na sociedade civil, capaz de cumprir suas promessas e aberto a todos que queiram contribuir com os seus esforços.
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Essa corrente teve sucesso?
Tivemos uma vitória temporária em 2016, quando nos mobilizamos em apoio a Rached Ghannouchi pelas reformas partidárias e quando teve início nosso processo de conciliação com Beji Caid Essebsi. As reformas aprovadas pelo 10º Congresso tinham o intuito de transmitir uma mensagem a grande parte da sociedade tunisiana que é moderna e progressista. Buscaram diversificar a base e dar mais chance aos conservadores, na sociedade como um todo, para que não abusassem da ideia de “legitimidade histórica”, como costumavam falar. A política conciliatória de Ghannouchi com Nidaa Tunis foi aprovada pelo partido porque sentíamos que havia uma necessidade de estabilizar o país. Portanto, concordamos com Ghannouchi naquele ano. O melhor retrato desse momento foi a nomeação de Zied Laadhari como secretário-geral do partido. Buscávamos superar Abdelhamid Jlassi, um cara implacável e linha dura, em busca de alguém realmente moderno e progressista. Dois perfis diferentes. Foi uma vitória para os reformistas no partido. Começamos bem.
A que você se refere como “legitimidade histórica”?
“Legitimidade histórica”, dentro do Ennahda, quer dizer que aqueles que eles próprios, ou membros de suas famílias, têm laços históricos com o movimento, desfrutam de tratamento e status diferenciado dentro do partido, com uma certa prioridade. Geralmente, “laços históricos” se referem àqueles que sofreram repressão. Costuma-se descrever essas pessoas como “um de nossos filhos” ou “uma de nossas filhas”. Na prática, quer dizer “aquele que realmente está conosco”.
O sr. disse que a vitória dos reformistas foi temporária. O que deu errado?
Após 2016, Ghannouchi marginalizou os extremistas, mas não os removeu do partido. O sheikh relutava em nos apoiar e avançar nas reformas. Mas nossa corrente reformista não teria poder algum sem o seu apoio. Nós não havíamos sofrido como sofreu o establishment sob o regime anterior, então carecíamos dessa tal de “legitimidade histórica”. Eles seriam os mais pobres que foram oprimidos e sacrificaram suas vidas pelo Ennahda, enquanto nós, reformistas, seríamos “os caras de terno”, tentando roubar o movimento deles. Para você ter uma ideia, os caras do establishment eram bastante diferentes de nós até mesmo em seu vocabulário ideológico. Por exemplo, eu não chamava meus colegas de partido de “irmãos”, mas sim pelos seus nomes. E nós, os reformistas, não tínhamos o mesmo apelo para a base do Ennahda que aqueles mais velhos. Um comentário que eu ouvi bastante deles, sobretudo após minhas primeiras declarações à imprensa, era: “Nós gostamos de você, mas o Ennahda não parece seu lugar”. Eu pessoalmente não me interessava em conduzir esforços para me tornar mais atraente para a base do partido, à medida que significava me tornar um líder tradicional em detrimento da sociedade. Eu tinha esperanças de que conseguiríamos reformar e diversificar a base porque sabia que não havia nada de errado comigo, por exemplo, ou com a sociedade tunisiana. O que estava errado era a própria estrutura do Ennahda. E, por estrutura do Ennahda, não me refiro às centenas de milhares de eleitores do partido, mas os poucos milhares de membros no bloco político, a quem eu e meus colegas demos o apelido de “guardiões do templo azul”, em referência à forma sectária com que operam. Ironicamente, os líderes nas pesquisas por anos e anos, supostamente favoritos entre a base do Ennahda, eram as figuras menos conhecidas ou aceitas pelo público geral.
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Além disso, nós, reformistas, não tínhamos a mesma capacidade de mobilização das “águias”. Certamente, eram muito mais experientes. Eram aqueles que havia protestado contra [Habib] Bourguiba nas escolas e [Zine el Abidine] Ben Ali nas universidades e que levantaram secretamente o movimento entre 2004 e 2010. Eram tão organizados que pareciam um partido dentro do partido.
Portanto, como não tínhamos nem a base nem a máquina que o establishment tinha, a única forma de obtermos vantagem era por meio das reformas internas que já reivindicávamos, desde que Ghannouchi nos apoiasse. Sua posição, no entanto, era de exercer certa balança de poder entre as correntes. Para ele, o mais importante era manter o Ennahda unido e poderoso no cenário doméstico. Ele não poderia nos apoiar caso implicasse em risco de perder uma porção dos militantes do partido e sua unidade. Por unidade, não quero dizer a liderança, porque Ghannouchi era bastante experiente em lidar com isso. Me refiro à base — aqueles que garantiam 20% dos votos para o partido em todas as eleições e aqueles que saíam às ruas quando o partido precisava. Para mim e muitos reformistas, porém, diversificar a base ao abrir as portas a uma porção maior de conservadores na sociedade tunisiana era uma parte fundamental das reformas, mesmo que custasse um terço da base do Ennahda. Eu, pessoalmente, sempre considerei essencial diversificar o partido. Te dou um exemplo. No intuito de diversificar o Ennahda, conseguimos que o partido lançasse uma plataforma online para novos membros, como alternativa aos escritórios locais e para evitar que estes obstruíssem solicitações de pessoas sem a tal da “legitimidade histórica”. Somente essa ideia deixou as “águias” histéricas, porque temiam perdem a base que haviam garantido com um voto quase automático. Isso mostra que o establishment, na ocasião, era contrário às reformas internas que tanto buscávamos e que Ghannouchi tampouco estava plenamente comprometido em aprová-las. Para Ghannouchi era como arriscar perder uma parte da base militante e o senso de unidade do partido; assim como, em um sentido mais amplo, a própria sobrevivência do partido em uma democracia ainda muito jovem.
A falta de apoio de Ghannouchi fez os reformistas perderem tração?
À medida que a aliança entre o Ennahda e Nidaa Tunis gradualmente se tornou um embargo, o velho establishment passou a se queixar em voz alta das políticas de Ghannouchi e voltou a ganhar vantagem. Parte de suas acusações se referia à influência cada vez maior da família de Ghannouchi — o que era verdade. Este fato em si contradizia as reformas que o partido propôs em 2016. Além disso, o comportamento revoltoso das “águias” se confrontou a instituições bastante passivas que se estabeleceram após o 10º Congresso. Como exemplo, três de quatro representantes do Ennahda que conversavam com a imprensa todos os dias eram “águias”, que expressavam sua opinião pessoal como se fosse do partido — e o escritório de Ghannouchi, de onde emanava quase todo o poder, após o 10º Congresso, também relutava em corrigir os erros. Por fim, o fato de que Ghannouchi não ostracizou os caras do establishment lhes deu oxigênio para que se reorganizassem. Tenha também em mente que eles tinham muito mais recursos para se encontrar com a base do que nós. Além disso, o fato de que foram, sim, marginalizados e não tinham responsabilidade nas atividades do partido lhes garantiu tempo livre para mobilizar suas bases. O resultado foi que todos os reformistas perderam as eleições internas do partido em 2019. O velho establishment venceu em todo o país. Nenhum dos candidatos ao parlamento seriam reformistas ou correligionários do círculo de Ghannouchi. Tudo que tínhamos feito em 2016, todas as reformas, caíram por terra! Foi naquela noite que eu renunciei. Assim que vi os resultados, ficou claro para mim que o organismo do Ennahda rejeitou as reformas. Nós não estávamos apenas de volta à estaca zero de 2016 — era pior, de volta à década de 1980. Renunciei porque o velho establishment estava de volta após Ghannouchi ignorar nossos apelos para combatê-los. Depois disso, Ghannouchi mudou a forma com que as listas do partido seriam apresentadas, para assegurar algum equilíbrio entre reformistas e o velho establishment. Para mim, no entanto, as coisas não se resolveriam dessa maneira. Os reformistas continuariam a depender de Ghannouchi para chegar a certos cargos, e qual o sentido de continuar sob essas condições?
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Em retrospecto, como você avalia os três anos de reformas partidárias, de 2016 a 2019?
Infelizmente, após o 10º Congresso, o debate sobre as reformas perdeu gradualmente o enfoque nas mudanças necessárias para modernizar o partido a um tipo de polarização entre o campo pró-Ghannouchi e o campo anti-Ghannouchi. A controvérsia levou ao lado opositor pessoas que poderiam ter capacidade de mudança, que se tornariam eventualmente também reformistas. Honestamente, lamento que não houve conversas diretas entre reformistas e algumas das “águias”. Ghannouchi sendo o mediador, afinal, não era uma boa coisa. Melhor seria se os reformistas estivessem mais bem organizados para conversar diretamente com os representantes mais moderados dentre as “águias” — aqueles com capacidade de mudança. É fundamental destacar que os dois campos não eram homogêneos.
Como você avalia o legado de Ghannouchi hoje?
Me considero privilegiado de ter começado minha carreira política quando Ghannouchi era líder do Ennahda. Os fundadores são figuras únicas e Ghannouchi tinha mais de quatro décadas de experiência, nos mais distintos contextos. Ghannouchi, o intelectual, me proporcionou, assim como, provavelmente, a muitas gerações do partido, um sentido de orgulho em ser muçulmano no mundo atual. Ghannouchi nos imbuiu da convicção de que não deveríamos comprometer ou sacrificar nossa identidade e nosso patrimônio para sermos modernos e contemporâneos. Compreendemos, de fato, que o Islã não é apenas compatível com a modernidade, como contribuiu bastante para as grandes conquistas da humanidade de que usufruímos hoje. A ideia de Ghannouchi de que o Islã é compatível com a democracia não é apenas uma ideia, mas uma mentalidade e uma filosofia que seguimos.
Qual o futuro do Ennahda na sua opinião?
O Ennahda mostrou que não pode reformar a si mesmo. É um partido islâmico. Acredito, de verdade, que não há nada de extremista ou “terrorista” nele, e que não há relação alguma entre o partido e os assassinatos de 2013. Ainda assim, falhou em evoluir a um partido cívico-político completo porque carece ainda de qualquer orientação política e econômica clara. Acredito que a atual luta do Ennahda contra o presidente Kais Saied é sua última luta. O Ennahda deve acabar com Rached Ghannouchi e um novo projeto deve emergir. Ghannouchi entrará para a história como um dos pensadores mais progressistas no que diz respeito à relação entre Islã, democracia e liberdades civis. Contudo, fracassou em termos de governança. O que a Tunísia precisa agora é de um novo partido capaz de dialogar com a parcela conservadora da população. No mundo todo, há liberais e conservadores. Os mais à direita entre os conservadores são apenas uma corrente ideológica. Não são exatamente um partido em si. Na Tunísia, se você perguntar às pessoas se se veem como conservadoras, mais de 60% dirão que sim. Ainda assim, o Ennahda, como principal partido conservador, recebe apenas 20% dos votos. Isso implica que conservadores islâmicos são somente um nicho do amplo conservadorismo. O Ennahda representa uma ideologia dentro de uma grande família conservadora. É um movimento político que sequestra, infelizmente, todo um espaço amplo. Portanto, não representa plenamente os conservadores. O país precisa agora de uma segunda geração, que possua uma identidade econômica tão importante quanto sua identidade política e social.
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