À medida que a ofensiva israelense em Gaza ganha uma nova escalada, rumo a uma suposta vitória ao projeto sionista, a visão do pós-guerra continua em dúvida.
Desde que a invasão começou, há um ano, a questão permanece no centro do debate entre oficiais, organizações e facções israelenses, incluindo sugestões de que os palestinos tenham alguma autonomia no enclave, sob a Autoridade Palestina, ou uma estrutura distinta, ou mesmo reivindicações abertas de que Gaza seja ocupada, por períodos sequer determinados.
São estes que parecem mais honestos, ao expressar como tese o que já vem sendo aplicado. Após devastar muito mais da metade da infraestrutura de Gaza e assassinar mais de 47 mil de seus habitantes, Israel agora se concentra no aspecto de longo prazo de sua operação — isto é, aprofundar e manter o controle de segurança enquanto marginaliza os palestinos —, sobretudo ao impor a infraestrutura necessária para fazê-lo.
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Os palestinos, as nações árabes e a comunidade internacional como um todo não devem se enganar ou encarar a situação com ingenuidade: as autoridades israelenses, as forças militares e, especialmente, a fração linha-dura da sociedade tem toda a intenção de ocupar Gaza. Se realmente evitaram expressar seu pensamento em voz alta é somente porque estão leiloando o território palestino a quem pagar mais ou for mais útil ou oportuno.
A questão — ao que parece — não é se Israel controlará Gaza, mas como o fará. Será por meio de seu controle direto, como antes de sua retirada em 2005? Será por meio de um controle indireto, ao permitir uma gestão árabe ou palestina dependente de Tel Aviv, como na Cisjordânia ocupada? Ou será pela terceirização do problema — uma tendência de muitos regimes e exércitos atuais — via empreiteiros privados?
Atualmente, a ocupação planeja limpar o caminho e construir numerosos corredores de segurança em Gaza. Dentre estes, estão os corredores Netzarim, que separa o norte do sul de Gaza, e da Filadélfia, que separa o enclave do Egito, e a isola do mundo externo, além de potencialmente o corredor Kissufim, que separa o centro do sul do território.
Fala-se também de outros dois corredores, ao redor de um gasoduto — até então sem nome —, para isolar outras áreas de Gaza.
Cada um deles deve ser tomado por tecnologia de vigilância, como câmeras, holofotes e outras ferramentas de rastreamento, provavelmente alicerçadas sobre inteligência artificial. Tais métodos serão aplicados para manter a população palestina — ou o que restar dela — em xeque e garantir a continuada supressão de todos que escolherem o caminho da resistência.
Um possível componente desses planos se revelou neste mês, via relatos de que Israel e Estados Unidos avaliam um plano para empregar uma empresa de segurança binacional para administrar Gaza, sobretudo ao submeter os palestinos a monitoramento biométrico, sob ameaça constante de retenção da ajuda humanitária caso se recusem a acatar a seus arbítrios.
A ideia deve começar como um programa-piloto, no noroeste de Gaza, envolvendo mil mercenários incumbidos de instaurar “comunidades muradas” dentro do território, onde controlariam seus habitantes e a totalidade de seu movimento por meio de biometria e outros sistemas de vigilância.
Os objetivos de Israel são cada vez mais claros: estabelecer uma política de bombardeamento e guerra psicológica tanto contra os palestinos quanto contra a ideia de sua soberania. E sob tamanha distopia que esperança haveria aos palestinos de Gaza em continuar a resistir ao poderio esmagador e à supremacia tecnológica do exército israelense, ou mesmo sonhar em reaver seu território e viver com alguma liberdade?
Isso tudo junto de um objetivo pouco a pouco declarado de expandir as fronteiras territoriais de Israel em toda a região, a começar pelo Líbano e Gaza, em sua clássica estratégia sionista de “pedaço a pedaço”.
Ao expandir essa ocupação, os palestinos como um todo — de Gaza, em particular — devem s tornar um povo inteiramente subjugado, sob a materialização das promessas sionistas de supremacia absoluta. O que Israel não parece compreender, no entanto, é que ainda terá em suas mãos um enorme problema — um problema que seguirá a ser uma pedra no sapato da ocupação.
Conquista e ocupação são passos que poderiam — embora odiados — ser de algum modo tolerados ou engolidos por muitos. Humilhação e degradação, porém, são criaturas distintas, e um poderosíssimo estímulo a resistir à injustiça. A constante humilhação de um povo ocupado certamente o levará — uma hora ou outra — ao caminho da resistência.
Este é um caminho que não admite chantagem, tampouco propina, e que não pode ser mitigado por promessas, não importa a abundância, de prosperidade, legitimidade política, autonomia restrita ou ovação internacional. Aos humilhados, todas essas supostas garantias são insignificantes diante de sua longeva subjugação. Liberdade e dignidade não têm preço e todo o restante, por mais que brilhe, desmancha no ar.
Aqueles que sofreram com uma situação ou um relacionamento abusivo, por exemplo, podem melhor entender: a manipulação, as ameaças, o castigo impostos por seus abusadores parecem, salvo escala, similares às práticas do regime de Israel contra os palestinos e à forma como Gaza se aplica neste meio.
Como disse um ilustra líder palestino, em uma entrevista, anos antes de ser assassinato por forças israelenses: “Por acaso o mundo espera de nós que sejamos vítimas bem-comportadas — enquanto eles nos matam? Que sejamos massacrados sem sequer dar um pio? Isso é impossível”.
Os ditames israelenses impostos a Gaza por quase duas décadas foram suficientes para inculcar essa ideia. E os planos de subjugação para o enclave — e aos territórios palestinos como um todo —, sob tamanha distopia, têm um destino e um destino apenas: alimentar e motivar ainda mais a resistência.
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