Em 19 de novembro de 1995, foi deferido o indiciamento do Tribunal Penal Internacional (TPI) aos ex-líderes sérvios — da antiga Iugoslávia — Radovan Karadjic e Ratko Mladic.
Dentre 12 e 13 de julho de 1995, Mladic chegou em Potocari — onde milhares de homens, mulheres e crianças da comunidade bósnia muçulmana buscavam refúgio, dentro e nos arredores de um complexo militar das Nações Unidas —, junto de assessores militares e uma equipe de televisão. O general filmou a si mesmo dizendo aos muçulmanos que suas famílias receberiam salvo-conduto a Srebrenica.
Mladic então lotou um ônibus de refugiados aterrorizados, a quem se dirigiu: “Boa tarde a todos. Vocês ouviram histórias sobre mim por muito, muito tempo. Agora, estão diante de mim (o motorista o interrompe). Você, cala a boca! Seu trabalho é dirigir!”
“Eu sou o general Mladic. Há pessoas aptas fisicamente entre vocês”, prosseguiu Mladic. “Vocês estão todos seguros. Vocês serão todos transportados a Kladanj. Desejamos uma viagem segura. Vocês, em idade militar, não retornem ao front. Basta de perdão. Agora, eu estou lhes dando a vida — como um presente”.
Em Potocari, homens e meninos foram separados das mulheres, transportados de ônibus a Bratunac e fuzilados por soldados sérvios.
Mais ou menos nas mesmas datas, seguiu a denúncia, homens e mulheres muçulmanos que se refugiavam no complexo das Nações Unidas foram executados sumariamente e os seus corpos foram abandonados nos campos e prédios do local.
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Quase três décadas depois do genocídio de Srebrenica, o mesmo — quiçá, pior — ocorre dia após dia no campo de refugiados de Jabalia, no norte de Gaza.
Tamanha matança é tão organizada quanto.
Homens são separados de mulheres e levados a um destino desconhecido, muitos deles jamais vistos novamente. Corpos lotam as ruas, que servem de evidência das execuções sumárias: homens, mulheres e crianças mortos, com suas cabeças arrancadas, jogados nas entradas dos edifícios.
Diferente das execuções de campo em Srebrenica, no entanto, o genocídio em Gaza está muito bem documentado em vídeo.
Ao mesmo tempo, um soldado da ocupação israelense é filmado por colegas distribuindo doces a crianças à espera de transporte.
O que está acontecendo neste exato momento no norte de Gaza é qualitativamente ainda distinto de todos os horrores vivenciados por Gaza nos últimos 12 meses.
Pior do que a Nakba
O que está transcorrendo diante de nossos olhos é também pior do que a Nakba — termo em árabe para “catástrofe” — de 1948, quando mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas casas e terras. O que se passou em Deir Yassin ou Tantura ocorre, hoje, toda noite no norte de Gaza.
A tecnologia de morte mudou. O intento de não deixar sobreviventes, nenhum um pouco.
Hoje, um cerco total está imposto. Não há comida, água ou medicamentos. O que restou do sistema de saúde, após um ano de bombardeios, passa agora por ações meticulosas para desmantelá-lo de vez. Escolas continuam bombardeadas. O norte de Gaza se tornou inabitável.
Como em Srebrenica, as vítimas civis foram carregadas a “áreas seguras”; então mortas.
Trata-se de assassinato em massa, organizado em escala industrial.
“O cheiro da morte está por toda a parte”, escreveu Philippe Lazzarini, diretor da Agência das Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). “Os corpos continuam nas ruas e debaixo dos escombros … Missões para limpar os corpos ou prover assistência humanitária [aos sobreviventes] continuam impedidas”.
Mais de oito mil homens e meninos bósnios foram chacinados em Srebrenica.
Há cerca de 400 mil palestinos ainda radicados no norte de Gaza, com dezenas de mortes todas as noites sob artilharia, ataques de drones ou execuções à queima-roupa. As ações seguem há três semanas e não há qualquer pressão internacional real para que o premiê israelense Benjamin Netanyahu cesse seus crimes. Nenhum líder ocidental parece ter se dado ao trabalho de emitir sequer uma nota de repúdio.
Os dois casos diante do Tribunal Penal Internacional e do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) incluem algumas das mais graves acusações de violação do direito internacional na história moderna, como genocídio, crimes de guerra e lesa-humanidade. Ainda assim, os processos parecem permanecer paralisados.
Cinco meses se passaram desde que o promotor-chefe do TPI, Karim Khan, requereu um mandado de prisão contra Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant. Os líderes do Hamas citados na denúncia — Ismail Haniyeh e Yahya Sinwar; além de Mohammed Deif, segundo Israel — estão mortos.
Restam apenas os líderes israelenses, para que enfrentem o devido processo.
A média de espera para que os juízes da câmara de pré-julgamento defiram um mandado da promotoria é apenas dois meses. O Estatuto de Roma reitera que o propósito da corte não é apenas responsabilizar os criminosos, como impedir que os crimes ocorram. Ainda assim, cinco meses se passaram e os massacres continuam dia após dia.
“Terminar o trabalho”
Longe da prisão, Netanyahu parece agradecer os aplausos.
Em casa, a morte de Sinwar foi tida como se avalizasse sua política de desafiar seu maior fornecedor de armas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que vem lhe pedindo, ao menos em público, que acatasse aos esforços por um cessar-fogo.
Amit Segal, comentarista do Canal 12 da televisão israelense, insistiu que o “sucesso” em matar Sinwar se deu justamente por Israel não ouvir ninguém por um ano inteiro e manter sua estratégia militar, ao impedir um cessar-fogo apesar da pressão internacional.
No exterior, uma fina membrana divide os campos mais tradicionais da centro-esquerda e da direita sobre a Palestina.
Biden diz uma coisa, mas todos nós sabemos que ele se alegra em continuar a armar até os dentes as forças israelenses. Donald Trump tem a única distinção de pronunciar o que bem pensa. Ambos são aquiescentes. Se vale alguma coisa, líderes como Keir Starmer, atual premiê britânico, e Antony Blinken, chanceler americano, são ainda piores do que o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, e Jared Kushner, ex-assessor e genro de Trump.
Em sua 11ª viagem à região, Blinken afirmou a Netanyahu ter uma “sensação” de que um plano foi concebido por generais reformados para expulsar a população do norte de Gaza via fome — plano este em curso. Netanyahu não pestanejou em mentir, como tem feito a Biden e seu governo reiteradamente.
Uma sensação de um massacre? E o que temos reportado todos os dias?
Os assassinatos seguem desenfreados em Gaza porque Netanyahu sabe muito bem que Biden está a apenas duas semanas de uma dura eleição presidencial e carece de capital político, ou vontade, de pará-lo.
Não importa se admitem ou não — Netanyahu vem persuadindo essas lideranças de que tem virado a maré de sua guerra na Faixa de Gaza e no Líbano e que é muito bem capaz de “terminar o trabalho”.
Mas o que isso significa? O que quer dizer concluir sua missão?
Para os sionistas supremacistas do partido Otzma Yehudit (Poder Judeu), o fim da guerra quer dizer despejar à força todos os palestinos e lotar Gaza de colonos. Para dar ênfase a sua influência, uma conferência foi realizada na segunda-feira (28), a três quilômetros de distância de Gaza, em meio ao barulho das bombas. Diversos membros do partido Likud, de Netanyahu, compareceram ao evento.
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Muitos dos participantes ostentaram broches e adesivos celebrando Mair Kahana, rabino nascido nos Estados Unidos e terrorista condenado, que reivindicava abertamente que os palestinos fossem mortos ou expulsos da região.
Danielle Weiss, líder colonial israelense, afirmou que sua organização, Nahala, já tem um acordo de “milhões de dólares” em mãos para estabelecer habitações temporárias como preparação ao assentamento ilegal de Gaza. “Vocês verão os judeus entrando em Gaza e os árabes desaparecendo de lá”, pregou Weiss na conferência.
Assistindo Gaza queimar
Eventos como esse são minimizados por apoiadores de Israel no Reino Unido como uma espécie de ponto fora da curva, brevemente histriônico, que supostamente não refletem a totalidade do Estado, do que ainda chamam de “Israel em si”. Conforme essas figuras, a maioria dos israelenses rejeita a reocupação de Gaza.
Mas não é verdade. Na melhor das hipóteses, a maioria dos israelenses testemunha todo um plano para esvaziar Gaza e não faz nada para impedi-lo.
Mais notável do que a presença do ministro de Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, na conferência — em que judeus fundamentalistas dançaram sobre os mortos para celebrar a queima de Gaza — foi a presença de membros do Likud.
Netanyahu nega ter planos para esvaziar Gaza, mas a deputada, Tally Gotliv, é muito mais franca sobre seu partido e aquele que o lidera. Gotliv não hesitou em falar ao Middle East Eye: “Não tenho dúvidas de que ele apoia o assentamento de Gaza porque nos trará mais segurança [sic], não apenas para a área ao redor de Gaza como todo Israel”.
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Gotliv não se envergonha em apoiar os crimes cometidos no norte de Gaza: “Aquela gente permitiu que os combatentes do Hamas cruzassem [a Israel] em 7 de outubro. Não tenho dó nenhum. A única misericórdia é a chance que lhes demos para sair. Deveriam ter saído em direção ao sul”.
Ver Gaza queimar é um esporte e um espetáculo. Os israelenses se reúnem em veículos civis para assistir o genocídio das colinas nos colonatos.
Nunca, porém, houve tamanha lacuna de compreensão entre os conquistadores e o povo vitimado. Nunca os israelenses ignoraram tanto o que suas ações têm incutido na alma e no coração dos árabes — não importa credo, clã ou etnia.
A opinião pública em dois países árabes que assinaram acordos de normalização com Tel Aviv — Egito e Jordânia — pode elucidar melhor a matéria.
Mortada Mansour é um político egípcio que descreveu a revolução popular de 2011 como “o pior dia na história do Egito”. Mansour sempre detestou a Irmandade Muçulmana e foi um apoiador ardente do golpe militar do presidente Abdel Fatah el-Sisi. Não falamos aqui de nenhum islamita. Porém, escreveu sobre Sinwar: “O martírio do combatente palestino Yahya Sinwar nas mãos dos criminosos sionistas e seu ferimento no rosto confirmam que foi um soldado corajoso que encarou a morte de frente para defender sua pátria ocupada, sem jamais correr ou se esconder em um túnel como disseram os sionistas”.
“Sinwar não fugiu para Paris ou Londres, onde alguns árabes ricos se ocupam nas boates, nos salões de apostas, apostando milhões de dólares com seus caprichos, enquanto as crianças do nosso povo irmão, o povo palestino, sequer têm água de beber”, acrescentou Mansour. “Em vez disso, permaneceu em sua terra, resistindo até a morte”.
O nasserista Hamdeen Sabahi era outro detrator contumaz do falecido presidente egípcio Mohamed Morsi, deposto por Sisi. Sobre o líder falecido do Hamas, destacou: “A imagem de seu martírio joga pedras nos céticos. [Sinwar] doi morto como todo os heróis de Gaza, sem se esconder nos túneis, cercado de seus prisioneiros. Estava junto de seus homens, enfrentando o inimigo. Seu sangue forte inspira o apoio à resistência até que a Palestina seja libertada. Vida longa a Sinwar — na terra e no além”.
O mesmo ocorre na Jordânia.
Sem justiça
As famílias de dois combatentes que realizaram um ataque transfronteiriço — a partir da Jordânia — ao sul do Mar Morto, ferindo dois soldados de Israel, receberam uma multidão de pessoas em seu apoio.
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O pai de um dos homens, Amer Qawas, foi carregado nos ombros pela multidão durante o funeral em Amã. Nasser Qawas insistiu que o sangue de seu filho não é nem menos, nem mais precioso que o sangue derramado do povo palestino.
Todo mundo parece ter se esquecido do homem que empresou seu nome às Brigadas al-Qassam, braço armado do Hamas. Foi um pregador sírio chamado Ezzedine al-Qassam, que morreu em uma insurreição contra colonizadores europeus na região do Levante, em 1936. Cinquenta e seis anos após sua morte, o Hamas criou suas forças de resistência — batizada em sua honra —, que combate a ocupação israelense por muito mais tempo do que todos os exércitos árabes combinados.
Em Yahya Sinwar, Israel acabou por criar uma lenda, um ícone da resistência, ainda mais poderosa do que Qassam, no imaginário árabe e palestino.
Como bem observou o comentarista Fadi Quran, para cada palestinos que Israel mata de maneira brutal — como Sha’ban al-Dalou, queimado vivo em sua tenda, no pátio de um hospital em Gaza; ou Hanan Abu Salami, mulher de 59 anos, executada por um soldado israelense enquanto colhia azeitonas na Cisjordânia —, centenas de milhares de Sinwars e Qassams parecem mais e mais motivados à batalha.
Netanyahu pensa, sim, que está vencendo a guerra ao soterrar seus inimigos — e todo um povo — debaixo dos escombros. O que está sepultando, no entanto, é a chance de que os judeus israelenses, com sua mentalidade colonial e supremacista, vivam em paz com os vizinhos árabes nas décadas porvir.
Karadjic e Mladic chegaram ao banco dos réus. Hoje, servem penas perpétuas em Haia e Parkhurst. Neste ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução para estabelecer 11 de julho como Dia Internacional de Reflexão e Memória do Genocídio em Srebrenica, data a ser observada anualmente.
Ainda duvido, infelizmente, que Netanyahu, Gallant e todos os responsáveis pelos crimes de genocídio em Gaza enfrentem a justiça em suas vidas.
Quem sabe, terão contas a pagar na próxima vida.
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Publicado originalmente em Middle East Eye
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