Poderão os BRICS dar fim à hegemonia dos EUA no Oriente Médio?

A cúpula dos BRICS, entre 22 e 24 de outubro, ocorreu neste ano em Kazan, na Rússia. Às vésperas do evento, o bloco geopolítico lançou um relatório histórico propondo a criação de uma nova infraestrutura de comércio e fluxo fiscal por meio de suas próprias moedas, em vez do dólar americano.

Este é um desenvolvimento importante em potencial, à medida que alguns especialistas corroboram o uso do dólar como “arma” contra países que contradigam os interesses dos Estados Unidos, por meio de sanções, congelamento de recursos e outras medidas, que, de toda forma, deterioraram a confiança internacional na moeda americana e levaram a uma demanda global por desdolarização.

Desde 1944, a hegemonia do dólar sobre todas as outras moedas do mundo permitiu aos Estados Unidos influenciar e até mesmo controlar as políticas da maioria dos países em desenvolvimento, incluindo no Oriente Médio.

Por décadas, os Estados Unidos se mantiveram à frente do mundo, em termos de poderio militar, tecnologia, desenvolvimento e controle de recursos naturais. Muitos economistas, porém, creem que o dólar — considerado a única moeda de reserva global — representa um dos elementos mais cruciais para a hegemonia americana, sobretudo na relação com países emergentes.

Este fato se sentiu na pele nos últimos 12 meses, ao passo que comunidade internacional continuou incapaz — senão renitente — de contrapor as políticas de Washington e cessar o genocídio israelense em curso na Faixa de Gaza sitiada.

Os Estados Unidos impuseram suas políticas sobre boa parte do mundo árabe mediante assistência fiscal e militar a Estados como Egito, Jordânia, Iraque e outras nações pobres da região.

Países mais ricos, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, deram prioridade aos seus próprios interesses no que diz respeito aos Estados Unidos, sem assumir, portanto, quaisquer ações significativas sobre a agressão no Líbano e na Palestina.

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Nos últimos anos, as nações dos BRICS aumentaram suas reservas de ouro, com líderes em busca de independência frente a moeda dos Estados Unidos. Até mesmo membros da União Europeia, incluindo o ministério de Relações Exteriores da Alemanha, expressaram recentemente desejo de um sistema de pagamento baseado no euro, sem a influência do dólar e dos Estados Unidos.

Embora o dólar continue a dominar o fluxo de capital em uma proporção de 90%, o ano de 2022 vivenciou, ainda assim, seu índice mais baixo, no período de 20 anos, como reserva de moeda estrangeira.

Desde sua criação em 2009, os BRICS defendem uma ordem mundial multipolar, através de um sistema de comércio e financiamento global que considerem justo, de acordo com as ambições primárias do chamado Sul Global. As nações dos BRICS dialogam, portanto, para estabelecer uma nova moeda de reservas estrangeiras, que permitiria a seus países maior independência econômica.

Diante das guerras financiadas por Washington no Oriente Médio, muitos têm esperanças de que uma queda substancial na hegemonia do dólar como reserva global e protagonista no comércio internacional inibiria a influência destrutiva do país em todo o mundo.

Mas quem é que poderia destronar o dólar americano, como tanto almeja o Sul Global?

Desdolarização

O bloco dos BRICS pode, sim, exercer um papel significativo em desafiar a dominância do dólar americano. Isso poderá ocorrer ao aumentar as reservas dos respectivos países em ouro e outras moedas estratégicas, como o yuan chinês, em vez do dólar, além de formar acordos de comércio não-dolarizados.

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Desnecessário dizer, os países fundadores dos BRICS já não têm muita afeição para com as políticas dos Estados Unidos, em particular, China e Rússia.

Após a Casa Branca congelar as reservas líquidas da Rússia, no valor de US$300 bilhões, como resposta à invasão da Ucrânia, em 2022, a fim de conceder parte da receita a Kiev, o presidente russo Vladimir Putin sugeriu investimentos em ativos tangíveis, como petróleo e ouro.

Segundo informações sobre o ano de 2024, as reservas em ouro dos bancos centrais das nações dos BRICS, mais o Egito, “concentraram mais de 20% de todo o ouro resguardado por bancos globais — Rússia, Índia e China estão entre os dez maiores detentores”.

Apesar da preeminência do dólar americano por mais de oito décadas, sua proporção nas reservas monetárias internacionais vem caindo desde o início dos anos 2000, de cerca de 73% a 58%, em favor do ouro e moedas não-tradicionais.

Diversos países reduziram suas ações no Tesouro americano, com alguns, como Rússia e Turquia, chegando a zero. Sete países que estavam entre os principais e mais tradicionais titulares de ações do Tesouro americano reduziram reservas a um total de US$2 trilhões, durante a última década, entre os quais Japão, Rússia, China e mesmo Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Como resultado, observa-se, apesar da dívida pública dos Estados Unidos ter dobrado na década passada, de US$17.8 trilhões a US$35 trilhões, o valor dos títulos do Tesouro nas mãos de não-americanos não mudou, estacionado em US$8 trilhões, ao indicar queda de 45% a 23% na proporção mantida por estrangeiros, dentro do total de acionistas.

A cenoura e a vara

Os Estados Unidos se acostumaram a colocar a cenoura na ponta de uma vara para que o mundo árabe corresse atrás.

Propina na forma de assistência americana é um mecanismo de longa data para fazer que regimes e governos aquiesçam aos interesses de Washington. O Egito é um bom exemplo, à medida que seu exército desfruta de uma ajuda anual de US$1.3 bilhão desde o Tratado de Paz Egito–Israel de 1979, ao permanecer complacente com as políticas e os interesses americanos na região.

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Como opção, os Estados Unidos apelou particularmente à vara contra regimes ou países que buscaram independência. Washington puniu indiretamente países ao removê-los do sistema de pagamento Swift e impedi-los de transferir recursos entre entes bancários, ao constituir assim um “golpe severo” a nações como o Irã.

Os Estados Unidos também empregaram como arma sanções diretas contra regimes que rejeitassem, em alguma escala, suas políticas, ao mantê-las como um imperativo através de investimentos seja no mercado americano ou de seus aliados. Nações como Irã, Síria e Iraque despontaram como alvos notáveis dessas práticas.

De fato, tais medidas impostas por Washington não teriam êxito sem a estatura do dólar.

A cúpula dos BRICS de 2024 contou com 32 países, incluindo nove membros, ao abordar também a candidatura de mais de 30 Estados interessados em cooperar com o bloco ou se filiar a suas instituições. Um tema debatido foi o uso de moedas próprias no comércio interno e mesmo com Estados não-membros.

O bloco propôs ainda a criação de uma Iniciativa de Pagamento Transfronteiriça (BCBPI), com intuito de minimizar a dependência do sistema de pagamento único dominante hoje e encorajar nações a usar suas próprias moedas no comércio bilateral.

Os BRICS também anunciaram planos para estabelecer uma alternativa ao sistema Swift, controlado por Washington, capaz de permitir a membros que, de outra forma, “não têm meios efetivos de controlar ou influenciar o órgão decisório que governa as operações do Swift” a transferir pagamentos entre os bancos centrais sem barreiras. Para tanto, o grupo dos BRICS planeja agora adotar tecnologia de blockchain junto a moedas digitais.

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A eventual adoção de uma moeda unificada pelos BRICS seria uma medida estratégica e crucial para enfraquecer a posição do dólar americano.

Observadores otimistas creem que os BRICS podem contribuir de fato em depor a tirania do dólar. Mas o que é que podem fazer os BRICS neste sentido?

Os países que compõem a aliança dos BRICS usufruem de tremendas vantagens capazes de permiti-los alcançar seus objetivos de um mundo multipolar, assim como um sistema distinto de comércio e investimentos, em benefício do Sul Global.

Durante a cúpula de agosto de 2023 em Joanesburgo, na África do Sul, o grupo dos BRICS convidou oficialmente seis nações a integrar suas fileiras. Quatro novos membros foram confirmados: Egito, Irã, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. A Argentina, posteriormente, declinou o convite, e a Arábia Saudita se mantém como candidata.

Com a expansão, os BRICS+ — como é conhecido hoje o bloco, informalmente — detêm cerca de 46% da população e 28% da economia globais; seu produto interno bruto (PIB), com base na paridade do poder de compra (PPC), excede 35%, acima do Grupo dos Sete (G7), que mal chega a 30% do PIB global.

Quando a recursos energéticos, os membros do bloco desfrutam de 47% das reservas de petróleo e 50% das reservas de gás natural. Os membros dos BRICS trabalham agora para aprofundar o comércio entre si por meio de moedas locais — em vez do dólar americano —, incluindo compra e venda de recursos naturais. Os greenbacks — versão fiduciária do dólar — são hoje a única moeda utilizada no comércio de petrodólar, embora os maiores compradores, assim como os maiores exportadores, integram os BRICS — assumindo a adesão saudita ao bloco.

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Os BRICS também estabeleceram seu próprio banco, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), presidido hoje por Dilma Rousseff, com a ambição de competir diretamente com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

O fim da hegemonia dos EUA

Apesar de os membros dos BRICS possam estarem ainda divididos sobre criar ou não sua moeda compartilhada, há um consenso crescente de que não é possível que continuem dependentes meramente do dólar.

À medida que os Estados Unidos vive uma escalada sem precedentes de seu isolamento internacional, devido a seu apoio inabalável a Israel, muitos analistas esperançosos, seja no mundo árabe ou além, enxergam a erosão da dominância do dólar como o início do fim do império americano.

Se governos e indivíduos em todo o mundo estão menos inclinados a aceitar o dólar, cada vez mais enfraquecido, então Washington será eventualmente forçado a interromper sua impressão de bilhões de dólares que financiam indefinidamente as guerras genocidas de Israel tanto no Líbano quanto na Palestina.

Contudo, embora os BRICS possam representar um meio poderoso rumo a este objetivo, sozinhos não são verdadeiramente capazes de mudar as políticas adotadas há décadas pelos Estados Unidos para o Oriente Médio. Países árabes também precisam adotar uma série de passos estratégicos, incluindo encerrar, pouco a pouco, sua dependência fiscal e econômica em relação a Washington, sobretudo o vínculo de suas moedas ao dólar, em vez de um conjunto de moedas mais oportunas — como no caso do Kuwait.

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Os países emergentes têm também de expandir ainda mais suas reservas de ouro, como fazem nações como China, Índia e Turquia, além de aderir a blocos financeiros, como os BRICS, como fizeram Irã, Egito e Emirados Árabes Unidos.

Tudo isso requer uma mudança de mentalidade dos governos árabes — algo ainda difícil de alcançar sob as circunstâncias correntes, ao ponto de depender, quem sabe, de uma nova Primavera Árabe, capaz de transformar abordagens complexas da região.

Publicado originalmente em Middle East Eye

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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