Mudanças que ganham corpo: Uma conversa com Mandy el-Sayegh

Um dia, Mandy el-Sayegh foi a um dentista egípcio para remover seus dentes do siso. Um dente quebrou de ambos os lados e a raiz ficou para trás. Enquanto sacudia seu crânio para frente e para trás, tentando arrancar o dente, comentou o médico: “Este é um molar bem palestino”

Persistência, resiliência e fé São características que Mandy el-Sayegh associa com suas raízes palestinas. Nascida em Selangor, na Malásia, em 1985, a jovem promessa da cena artística internacional, de origens miscigenadas do Oriente Médio, Malásia e China, mora hoje em Londres.

A arte é sua forma de navegar por suas múltiplas identidades, ao permitir que fragmentos distintos componham um todo organicamente. De maneira similar, sua identidade se construiu por uma vida quase nômade: “Me sinto alienada de minha ancestralidade, em certo sentido, porque cresci na Grã-Bretanha”.

“Coleciono imagens e objetos sem saber muito o porquê. Me sinto atraída por certas coisas, então as guardo comigo”. Em seguida, responde às formas e cores até que a obra lhe pareça harmoniosa. “Uma vez que eu reúno todos esses elementos distintos, esses fragmentos passam a conversar um com o outro de maneiras que não consigo muito bem controlar”.

A artista olha para relações entre a parte e o todo nas ciências e na filosofia, e como fragmentos de informação podem ser desconstruídos e reagrupados para engendrar um novo sentido. Sua abordagem à narrativa visual é descrita por sua curadora, Raza, como uma espécie de materialização do espírito rebelde do punk e do “faça você mesmo”, ao desafiar ordenações de mundo, sejam corporais, linguísticas ou políticas.

“Como uma artista que trabalha com colagens, tomo formas pré-existentes — jornais, frases, imagens de anatomia, instalações ou arquitetura — e as reordeno”, explicou a artista. “Isso significa que as relações previamente compreendidas são distorcidas. Podemos ver o absurdo do fragmento original ou nos tornar cientes da maneira como se constroem coisas que costumamos consumir sem sequer questionar”.

“Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa” (Dubai)

A última mostra de el-Sayegh na galeria Lawrie Shabibi terminou em 4 de abril de 2024. Com curadoria de Sara Raza, intitulada “Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”, a exposição foi descrita pela artista como resultado de diálogos e colaborações que transcorreram junto aos eventos do último ano.

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“As obras são todas parte um novo corpo artístico para mim, que busca lidar com ideias como censura e simbolismo tomadas de diferentes partes de minha história ancestral”. O espaço da mostra foi transformado para recriar uma experiência imersiva que emula o próprio estúdio da artista. As pinturas de el-Sayegh foram penduradas em uma instalação composta por camadas de jornais, telas e tecidos que cobriam as paredes.

“Eu não crio de verdade, eu reúno”, afirmou a artista. “Me vejo sobretudo como uma colagista e, não importa o material ou a escala com que estou trabalhando, a metodologia é sempre um processo de coleta, seleção e agrupamento”.

A exposição pega seu título emprestado de um verso da célebre modernista Gertrude Stein, que reflete sobre as práticas da vida diária, por meio da repetição de palavras e reivindicação de linguagem, ações, eventos e objetos.

“Sempre usei a ideia de estruturas fixas que se repetem em meu trabalho”, observou el-Sayegh. “Penso na repetição como uma forma de enxergar a mudança, ao longo do tempo, como algo que, ao se fixar no espaço, deixa evidente como é que mudou”.

Acredito que todo artista está sempre fazendo o mesmo trabalho, mas tudo o que acontece simultaneamente, a seu redor, muda a maneira como as pessoas recebem ou compreendem sua obra.

Na mostra, a artista recorre a uma seleção de diferentes jornais, tanto locais quanto internacionais: Financial Times, Khaleej Times, Asharq Al-Awsat, entre outros. Alguns trechos foram selecionados para mostrar como publicações distintas disseminam narrativas distintas sobre os mesmos eventos globais. Outros recortes são meramente paleta.

“Há um tom de verde no Asharq Al-Awsat; o Financial Times tem a cor de um tecido dentro do organismo”, detalhou el-Sayegh. Juntos, formam uma paleta e a base para outras cores, muitas vezes, também relacionadas a substâncias do corpo, como sangue, bile e urina. A paleta pode até parecer doce e pastel, mas essas são suas origens”.

Performance

A mostra incluiu uma performance em colaboração com a coreógrafa Chelsea Gordon e o compositor Sami el-Enany, centrada na praça como conceito e cenário para libertação e resistência. A performance toma como base orações rituais, cantos e estados de transe, a fim de evocar a tragédia enfrentada pelos palestinos nativos e reivindicar sua cura.

“Sami e eu temos conversado sobre como somos afetados, como artistas, pelos eventos políticos e sobre as dificuldades que enfrentamos ao trabalhar nas condições presentes”, recordou el-Sayegh. “Nossas conversas giravam sobre como lidar com tudo isso criativamente”.

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O trio já havia colaborado no passado e passou a discutir intersecções em suas respectivas abordagens, a fim de obter uma troca e participação mútuas. El-Enany trouxe à mesa suas próprias associações com a praça, como ambiente onde movimentos de protestos tomaram corpo, como na praça Tahrir, durante a Primavera Árabe em 2011, e muitas outras instâncias.

“Buscávamos pensar sobre as praças como um lugar de congregação e solidariedade, mas também de violência”, observou el-Sayegh. “Então, procuramos lidar com essas realidades ambíguas e como conceitos e abstrações poderiam conversar com os momentos de levante, luta e mudança”.

A artista nota que a praça também tem conexões com histórias da pintura geométrica e abstrata, como uma área de exploração de longa data. “Eu realmente queria subverter o espaço da galeria e trazer outros elementos capazes de proporcionar um sentido de vida e atualidade às obras, sobretudo diante dos eventos em curso”, reiterou el-Sayegh. “Penso que tanto o som quanto a performance fazem bem isso porque se baseiam no tempo e infundem na obra uma presença corpórea”.

Questionada se interpreta sua obra como política, el-Sayegh enfatizou que, em algum sentido, toda a obra feita hoje é certamente política. “Isso se deve ao fato de que a arte fala de seu tempo, mesmo que não tenha explicitamente temas políticos”.

Próximos projetos

O próximo projeto de el-Sayegh será uma espécie de continuidade de seu antecessor, algo comum em sua carreira. “Estou trabalhando nos temas presentes nesta mostra, desenvolvendo um trabalho a partir desses temas, como, por exemplo, os estados de transe, a censura, a poética e o simbolismo, o encontro entre culturas e a galeria como espaço de impulsos participativos”.

Sua obra segue agora à Basileia, na Suíça, parte do programa da Art Basel, na seção Parcours, realizada em uma série de espaços vazios e abandonados por toda a cidade.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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