“A figura de Aisha tem sido tragicamente obscurecida ao longo do processo de canonização — embora não totalmente omitida dos registros históricos”, escreve Sofia Rehman em seu livro Gendering The Hadith Tradition: Recentring the Authority of Aisha, Mother of the Believers — ou, em tradução livre, O gênero na tradição do hádice: Recentralizando a autoridade de Aisha, mãe dos crentes.
Aisha, esposa do Profeta Muhammad, de acordo com este livro, desfrutou de grande autoridade entre os muçulmanos até século XI, quando o processo de canonização, que envolveu crenças sunitas sobre certos textos, cortou boa parte de sua presença e de suas orientações religiosas. “Quem conhecemos como Aisha hoje é somente uma fração do que há para saber”. Rehman não defende qualquer rejeição da tradição islâmica contemporânea, mas sim uma emenda bastante necessária: nos tempos medievais, havia, entre os intelectuais islâmicos, uma robusta e riquíssima tradição de estudos do hádice, da jurisprudência e da crítica filosófica.
Tais ponderações nos ajudam a compreender a posição histórica de que Aisha usufruiu no Islã pré-canonizado. Rehman se refere ao acadêmico islâmico al-Zarkashi, radicado no Cairo da era mameluca (século XIV), cuja obra Correção: Retificação dos Companheiros de Aisha buscou contrapor a redução da autoridade e do papel de Aisha na tradição islâmica. Seu livro não tem tradução ao inglês, embora esta lacuna seja preenchida, em trechos cruciais, com comentário e contexto, por Gendering The Hadith.
O livro de Rehman é, em parte, um estudo acadêmico e feminista do Islã, partindo do trabalho feito por outras pesquisadoras da área. Um ponto fundamental posto pela autora é que reaprender o lugar de Aisha na tradição islâmica não quer dizer contrapor a busca por igualdade de gênero com as escrituras tradicionais — mas sim, apreciá-las. O que vemos hoje é somente uma versão parcial da tradição religiosa islâmica e o objetivo deste livro é, portanto, nos permitir ponderar sobre as partes que nos parecem invisíveis. “Aisha — como qualquer outro ícone da história, incluindo o Profeta — teve sua persona construída e reconstruída repetidamente ao longo do tempo, em resposta a uma pletora de demandas sobre seu personagem”.
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A Aisha que encontramos em Gendering The Hadith é uma das figuras mais importantes dos primórdios do Islã. Aisha deixou também contribuições importantes a questões éticas e morais, além de temas da justiça e uma tradição narrativa do hádice — isto é, os relatos constitutivos sobre a vida do Profeta.
Aisha frequentemente questionava, contrapunha ou retificava outros companheiros do Profeta, assim como os primeiros califas. Por exemplo, em certa ocasião, Ibn Umar, companheiro do Profeta, compareceu a um funeral no qual ordenou à família que contivesse o choro, pois Deus castigaria os mortos pelo luto dos parentes. Quando sua alegação foi mencionada a Aisha, ela rogou a Deus que perdoasse Umar, pois havia citado equivocadamente os ensinamentos do Profeta. Aisha argumentou que ninguém carrega o fardo ou os pecados de outro indivíduo. Foi neste episódio que Aisha demonstrou não somente seu conhecimento da doutrina como suas capacidades de argumentação. Al-Zarkashi recorda uma série de incidentes nos quais Aisha corrige seus companheiros, seja em matérias do Suna, do Hádice ou do Alcorão.
Para a autora, “Aisha recorria em mensurar as palavras e problemas que chegavam até ela … De fato, possuía um critério próprio sobre o qual se embasava na realização do exercício jurídico”. Aisha, nos mostra este livro, tinha domínio sobre o hádice e costumava desafiar interpretações e distorções da história.
A Aisha que encontramos em Gendering The Hadith é uma das protagonistas dos primeiros ensinamentos religiosos do Islã, intelectualmente engajada nos desafios do dia a dia, capaz de refletir e conceder respostas sobre como compreender a doutrina. Gendering The Hadith alimenta a reflexão e contrapõe reduções simplistas sobre as ricas tradições do Islã. Como se vê, a demoção de Aisha em termos de contribuição ao conhecimento e às ciências islâmicas não decorreu de um único fator, mas sim uma combinação de fatores que este livro bem explora.
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Embora a tradição de Aisha não possa ser recriada em sua totalidade, como reconhece a autora, muito do que se perdeu ou permanece vago se compensa por aquilo que sabemos, ao carregar uma chance de repensarmos a ortodoxia moderna por meio de uma tradição expandida que é uma coisa viva. Gendering The Hadith oferece um guia sobre como a personagem de Aisha pode nos permitir, hoje, a ponderar de forma mais holística sobre a enorme tradição que temos em mãos.