Na metade de um capítulo sobre “A experiência cinematográfica da Unidade de Cinema da Palestina” em seu livro Knights of Cinema: The Story of the Palestine Film Unit, Khadijeh Habashneh observa: “A unidade de cinema decidiu evitar o uso de duas linguagens: uma para o povo e outra para o mundo”.
Em seu contexto, isso não parece mais do que uma observação passageira, mas, na verdade, é fundamental para a filosofia por trás da Palestine Film Unit (PFU). Pois o que o autor está realmente descrevendo é a natureza revolucionária do cinema palestino, como ele procurou fazer a ponte entre o local e o global, não diluindo sua mensagem para o público internacional, mas permitindo que os verdadeiros objetivos do povo palestino falassem diretamente ao mundo.
Será que o cinema realmente tem o poder de comunicar a profundidade de uma luta nacional sem concessões? No caso da PFU, os cineastas acreditavam que sim. Eles rejeitaram papeis rigidamente definidos e adotaram uma abordagem participativa, em que cada membro contribuiu em cada estágio da produção, desde a ideia inicial até a edição final. Essa abordagem coletiva e fluida não se referia apenas à produção de filmes; ela também refletia a solidariedade e a unidade no coração da revolução palestina.
Como fica claro rapidamente, Knights of Cinema… trata tanto do entrelaçamento entre a luta nacional e a narrativa cinematográfica quanto da arte técnica da produção de filmes. Essa é a tensão central à qual o livro retorna várias vezes: o papel do cinema como ferramenta de documentação e instrumento de resistência.
No final da década de 1960, enquanto cineastas palestinos como Mustafa Abu Ali lutavam para estabelecer uma presença cinematográfica, o campo de batalha era tanto literal quanto metafórico. Por um lado, eles enfrentavam os desafios físicos e políticos de documentar a luta pela libertação. Por outro lado, tiveram que criar um espaço para as histórias palestinas em um cenário cinematográfico global que muitas vezes procurava marginalizar ou distorcer sua narrativa. A jornada de Abu Ali de Al-Malha até se tornar uma figura importante no cinema palestino exemplifica essa dupla luta. Suas experiências pessoais de deslocamento e perda lhe deram uma perspectiva única sobre a importância de contar histórias autênticas, tornando-o uma figura central na criação de uma identidade cinematográfica palestina.
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No entanto, é a história de Sulafa Jadallah que permanece por muito tempo depois de fechar o livro. Ela não foi apenas a primeira mulher árabe diretora de fotografia, mas também uma pioneira em todos os sentidos da palavra. Sua ousadia e sua vontade de ultrapassar os limites em um mundo dominado por homens fizeram dela uma revolucionária tanto atrás quanto na frente da câmera. Como detalha a narrativa, ela estava se preparando para uma exposição em março de 1969, comemorando o primeiro aniversário da Batalha de Al-Karameh, quando foi baleada na cabeça por um soldado israelense.
Os detalhes sobre o ferimento de Jadallah, incluindo um crânio rachado, são de cortar o coração. Os soldados israelenses viram a lente de uma câmera como uma ameaça e a alvejaram. Apesar desse ferimento quase fatal, ela retornou a Amã em três meses e retomou seu trabalho, uma prova de sua determinação e resiliência.
O ferimento de Jadallah parece ainda mais significativo quando testemunhamos a contínua perseguição de jornalistas e profissionais da mídia em Gaza pelo exército de ocupação israelense. Os paralelos entre o ferimento de Jadallah e os ataques contínuos aos profissionais da mídia destacam um padrão de violência que visa silenciar aqueles que documentam as realidades da luta palestina. Hoje, como em 1969, o ato de capturar essas histórias em filme continua repleto de perigos, fazendo com que a experiência de Jadallah não seja apenas uma nota de rodapé histórica, mas um reflexo das ameaças constantes aos trabalhadores da mídia palestina.
O peso dessas histórias pessoais tornou-se ainda mais tangível durante o cerco de Tal Al-Za’tar e os eventos do Setembro Negro em 1970. Nesses momentos, o livro não mostra apenas os desafios logísticos ou técnicos da produção de filmes em zonas de guerra, como o acesso limitado ao campo e o risco à segurança pessoal. Ele também traz à tona a devastação emocional enfrentada pela Palestine Film Unit, que fazia parte da própria revolução que estava sendo documentada, independentemente do custo.
Os leitores podem sentir o peso dessa responsabilidade nas descrições do livro, já que os cineastas lutaram com o preço emocional de ver uma comunidade sendo dizimada, mas sabendo da importância de preservar esses momentos no filme.
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A agitação do Setembro Negro forçou Mustafa Abu Ali e seus colegas cineastas a confrontar a brutal repressão aos palestinos na Jordânia. O filme de Mustafa, With Soul, With Blood (Com alma, com sangue), refletiu isso, ilustrando as situações de risco de vida e o deslocamento que eles enfrentaram quando as forças palestinas foram expulsas da Jordânia.
O livro faz um trabalho notável de humanização desses cineastas, mostrando-os não apenas como documentaristas, mas como participantes da própria luta. Eles não eram observadores isolados; viviam e respiravam o conflito, e seus filmes se tornaram extensões de sua resistência. As dificuldades econômicas e a tensão emocional que enfrentaram são detalhadas de uma forma que torna sua resistência ainda mais inspiradora. Para cineastas como Hani Jawharieh, que lidou com dificuldades financeiras enquanto continuava a capturar a situação dos palestinos, o trabalho tornou-se tanto um mecanismo de sobrevivência quanto um ato revolucionário.
O livro também enfatiza o papel do cinema na formação da memória coletiva. Como Habashneh explica, os filmes da PFU não eram apenas registros de eventos; eram ferramentas para garantir que a luta palestina permanecesse viva nos corações e mentes das gerações futuras.
O que mais chama a atenção em Knights of Cinema… é seu compromisso com a autenticidade. Habashneh se baseia muito em histórias orais, permitindo que as vozes dos cineastas ressoem por todo o livro. Essa abordagem dá à narrativa uma qualidade crua e não filtrada que faz com que o leitor se sinta como se estivesse ouvindo essas histórias em primeira mão. A ênfase na narrativa sem embelezamento garante que os sacrifícios e as conquistas de figuras como Abu Ali e Jadallah sejam honrados de uma forma que pareça pessoal e universal.
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No final das contas, Knights of Cinema… não narra apenas a história da Palestine Film Unit, mas também dá uma ideia das pessoas por trás das câmeras, suas esperanças, seus medos e seus sacrifícios. Contra todas as probabilidades, eles mantiveram as câmeras rodando, o que deixa os leitores com um profundo respeito por esses cineastas pelo que documentaram, bem como pela forma como viveram.