‘Meu povo precisa de ajuda’, diz primeiro boxeador de Gaza no torneio mundial

Shams al-Tayeb, de 24 anos, prepara-se para fazer história como o primeiro palestino de Gaza a competir no Campeonato Mundial de Boxe (WBC). Sua luta, no entanto, não se resume ao ringue — al-Tayeb se vê lutando, dia após dia, pela liberdade e pelo futuro de seu povo. Hoje no Chipre, al-Tayeb treina incansavelmente apesar de seu coração permanecer em Gaza, onde sua família vive sob constante e violenta ameaça.

“Minha família ainda está em Gaza. Meu irmão, minha irmã, meus sobrinhos — estão todos presos. Meu pai também está lá e se recusa a sair”, comentou al-Tayeb, ao enfatizar as raízes profundas que mantém com sua terra, apesar da distância material.

Todos os dias, enquanto treina, al-Tayeb recebe notícias cada vez mais apavorantes de sua terra. O peso psicológico de estar milhares de quilômetros de seus familiares, cientes de que não há mais lugar seguro para onde fugir, leva o atleta para além de seus limites. “Estou dos dois lados do mar, ao mesmo tempo. Enquanto treino aqui para competir, minha mente e minha energia estão dedicadas em buscar maneiras de ajudar o meu povo em Gaza, seja lá como for”.

O boxe, para al-Tayeb, começou como uma necessidade. Antes de seguir carreira, ele era um empresário, gerenciando empresas. A piora da situação em Gaza, entretanto, o levou a transformar sua paixão em sua profissão. “Eu sempre fui um empresário. Tinha minha própria agência e meus escritórios. Mas fui forçado a utilizar meu hobby como subsistência”.

Sua entrada no mundo do boxe não se motivou por sonhos de fama e fortuna, mas a necessidade em proteger os seus. Criado em Tal-al Hawa, ao sul da Cidade de Gaza, seus anos de formação correram com um misto de uma infância comum e as realidades assombrosas da vida sob o brutal cerco de Israel. Aos nove anos de idade, al-Tayeb perdeu o irmão mais velho para um bombardeio das forças israelenses — um trauma que lhe deixou uma marca indelével. “Eu tive um irmão morto por Israel 15 anos atrás e fui eu que recolhi seu corpo das ruas”.

LEIA: Palestinos vivem uma nova Nakba, diz sobrevivente de 1948

El-Tayeb recorda também as vivências apavorantes de seu pai enquanto cobria a violência israelense em Gaza durante as guerras anteriores. Shams Ouda —jornalista veterano a serviço da agência Reuters — quase morreu certa vez por uma bala que lhe atravessou o peito. O projétil, disparado por um soldado israelense, errou seu coração por apenas cinco centímetros. Confundido como morto, chegou a ser colocado em um saco funeral e mesmo levado ao necrotério.

Meu pai foi baleado bem perto de seu coração. Ele acordou no necrotério. Imagina isso? Nós já estávamos de luto, chorando por ele e preparando seu enterro. Então, soubemos que estava vivo.

Eventos traumáticos como esse se tornaram, cumulativamente, pontos de virada para al-Tayeb, ao incitar sua determinação em aprender as artes marciais — entretanto, não por esporte ou lazer, mas por sobrevivência. “Ainda criança, teimei em aprender boxe e caratê, para me proteger e proteger minha família. Nunca aprendi a usar uma arma. Tudo que eu sabia era apenas autodefesa”.

Foi esse instinto de sobrevivência que prevaleceu em seu âmago — tanto dentro quanto fora do ringue.

Nos últimos 12 meses, enquanto treinava, forças israelenses mataram ao menos 42 mil palestinos em Gaza, incluindo 16.700 crianças. O massacre deslocou quase toda a população do enclave costeiro, em meio a um cerco militar em curso responsável por uma catástrofe de fome e colapso de saúde.

O fardo emocional de receber notícias diárias de amigos e familiares sobre as condições terríveis em Gaza pesa sobre os ombros de al-Tayeb. “Recebo mensagens de gente que eu conheço e que não conheço, sobre sua perda e suas dores, e é devastador” — sua frustração é palpável. Os pedidos de ajuda, as histórias de fome e sofrimento são impossíveis, no entanto, de ignorar. “Eu acordo triste e vou dormir triste, na esperança de que tudo isso pare algum dia”.

Apesar dos enormes desafios, al-Tayeb continua focado em sua missão. Sua participação no Campeonato Mundial de Boxe representa muito mais do que uma conquista pessoal — é uma forma desesperada de amplificar as vozes dos palestinos de Gaza. “Ainda não consigo me orgulhar. Meu povo precisa de ajuda, precisa de comida, água e coisas normais para qualquer ser humano”, lamentou al-Tayeb. Para ele, seu papel no torneio é nada mais que uma chance de trazer atenção global à crise humanitária em sua terra.

Gaza, para al-Tayeb, não é apenas um lugar — é parte de sua identidade, algo que carrega consigo para onde quer que vá. Suas lembranças de casa, lindas e dolorosas, moldam sua visão de mundo e motivam seu desejo por mudança. “Tal-al Hawa era um lugar de paz”, recorda o atleta, sobre sua infância. “É um bairro bastante pequeno perto do mar — agora não sobrou nada dele. É tudo literalmente escombro”.

Sinto saudades de tudo em Gaza. Posso ter visto mares mais bonitos do que os mares de Gaza, mas nenhum deles me trouxe tanto conforto e alento.

À medida que se aproxima o Campeonato Mundial de Boxe, Shams al-Tayeb luta com com os punhos cerrados dentro do ringue — mas fora dele, com unhas e dentes, luta por Gaza. É sua determinação para ver sua terra libertada que o motiva a seguir lutando. Al-Tayeb chegou a ser escolhido para competir no torneio internacional do ano passado, na Turquia. O evento, porém, foi cancelado após um terremoto deixar 2.300 mortos no país-sede e na Síria. Al-Tayeb tampouco conseguiu competir em Dubai e nas Olimpíadas de Paris, devido às condições impostas a seu passaporte palestino no contexto do genocídio israelense em Gaza. Agora, aguarda confirmação dos próximos campeonatos em Riad, Catar e Inglaterra.

LEIA: Em meio ao genocídio em curso em Gaza, artistas argentinos expressam solidariedade à Palestina

Al-Tayeb entende que sua jornada é muito mais do que o boxe: é uma batalha contínua por um futuro em que seu povo pode viver sem medo, em que as crianças podem crescer sem a ameaça constante da violência, em que Gaza esteja plenamente livre da opressão, da ocupação e do cerco.

“Tudo que eu quero é uma Palestina livre”, concluiu o atleta, sua voz repleta de convicção. “Apenas uma Palestina livre, onde meu povo possa viver em liberdade. E é, sim, uma questão de tempo. Tudo que precisamos é ter paciência”.

Sair da versão mobile