Enquanto artistas palestinos seguem questionando qual o sentido de fazer arte no atual clima político e social, o mercado não parece apreensivo. De fato, o mercado segue, sem jamais fazer perguntas como essas, para relegá-las aos próprios artistas.
Neste frio outono parisiense, essa entidade sem rosto chamada “mercado de arte” tomou a forma da feira Asia Now, evento com forte curadoria realizado no histórico La Monnaie. Encontrei-me com a artista palestina Mirna Bamieh neste pátio — uma das exibidoras que participava de uma palestra.
“Eu produzi muita coisa neste ano”, disse Mirna, que expõe não apenas na feira como em sua exibição solo, na Galeria Nika de Paris, além de outra mostra solo no Instituto de Artes Contemporâneas da Universidade de Nova York em Xangai. Por que tanto trabalho?
“Fazer arte é uma forma de realizar meu luto. Nem mesmo compreender o luto. Somente vivê-lo”, observou.
Os produtos deste processo são as ilustrações expostas na cabine temática Asia Now da Galeria Nika, cujo conceito buscou ponderar de uma única sentença — escrita por uma menina de Gaza de 13 anos de idade: “Se eu fosse um objeto, eu seria livre?”
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Mirna leu essa sentença assustadora nas páginas das redes sociais do Museu Palestino: “Quando li, uma parte de mim deixou meu corpo … Era tanta dor que eu precisa de tempo para processar”. E foi o que fez, ao construir e desconstruir a sentença nas mais distintas maneiras, na forma de suas ilustrações.
Sentados em um café em frente ao La Monnaie, nossa conversa se tornou uma entrevista, da mesma maneira natural com que Mina migra constantemente da vida à arte. “Eu faço arte desde antes de fazer arte, entende? Desde criança. É a vida que eu vivo. É o ar que eu respiro”.
Com um nariz cheio de sardas e uma maneira expansiva de mover suas mãos enquanto fala, há certamente em Mirna algo de poético e generoso enquanto articula ideias. Em seu processo de produzir arte, Mirna se entrega totalmente.
Mirna reúne ainda em suas obras estudos em gastronomia, psicologia e teatro, nos quais se aventurou antes de obter seu mestrado em Belas Artes. Além disso, há a influência de sua família, bastante prevalente, sobretudo de seu pai, um médico palestino que sempre sonhou em se tornar um pintor e enxerga a arte como algo sagrado, e da mãe libanesa, de quem herdou a paixão pela comida.
“Fiz muitos telefonemas à minha avó, inúmeros livros de receita e muito, muito trabalho em construir as receitas para os eventos sociais”, observou Mirna. “Somos uma família que come bem. Minhas irmãs são todas excelentes cozinheiras e penso que é porque nossa mesa de jantar sempre foi um espaço de conversas”.
Mirna notou que, em alguns lugares na região, cozinhar parecia uma atividade restrita às mulheres. “Ainda assim, é bastante emancidor”, insistiu a artista. “E bastante política. Na Palestina, a maioria das intifadas [levantes] partiram da cozinha. As mulheres lideravam e estavam cozinhando e alimentando os outros. Conversas secretas eram sempre feitas na mesa da cozinha”.
Nesse sentido, não surpreende que as primeiras obras de Mirna eram performances que evocavam o jantar, com receitas que pouco a pouco estão desaparecendo da Palestina. Seu objetivo era reconstruir a história coletiva por meio da comida, ao explorar ainda sua própria identidade palestina.
Seu projeto atual, “Coisas amargas”, foi concebido durante a pandemia, quando a artista se viu sozinha em um apartamento em Ramallah, ao construir uma dispensa como forma de encontrar consolo a si mesma sobre um futuro incerto. “Eu preenchia jarras, com uma enorme obsessão. E era tudo mais quieto durante a covid, eu parecia escutar as jarras, a forma como suspiravam, respiravam e faziam ruídos. Eu criei um universo para mim, para que fosse afinada e ponderado sobre”.
Há uma forte metáfora para o comportamento humano em espaços restritos: “Pensa na maneira com que o tempo e o poder moldam a jarra. Humanos não são diferentes. Somos 93% bactérias, cada vez mais e mais. Todo o conhecimento, os segredos da vida, aquelas coisas que vemos nos microscópios, tudo nos ensina que, sim, a vida vai acabar, mas as bactérias seguirão aqui. Elas nos moldam e são nossos ancestrais”.
“Coisas amargas” foi apresentada pela primeira vez na última Bienal de Sharjah, quando atraiu o interesse da Galeria Nika. A artista recorreu a oito lojas de um antigo mercado de vegetais em Sharjah, dentro de um prédio da década de 1970. Cada loja representava um momento distinto do processo de fermentação, e, junto delas, havia uma longa mesa com peças de cerâmica. Uma versão diferente do projeto chegou ao público no último ano, em uma mostra coletiva do Espaço Projeto Nika de Dubai.
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Esta se concentrou na cozinha e na despensa — “os verdadeiros lugares que olham para o futuro”, reiterou Nika. “É aqui que preservamos as coisas, que guardamos tudo no agora, sem consumir. É preciso olhar longe no futuro — e onde tem escassez, tem carência; tem guerra; quem sabe, não tem acesso; não tem controle. E então construímos a medula da casa na despensa”.
Para além de explorar o conceito de fermentação, “Coisas amargas” emergiu da demanda de Mirna por construir um lar pós-pandemia. “Sou palestina, mas fui totalmente nômade nos últimos dez anos, até que me mudei para Lisboa. Nasci em um lugar onde o direito de ir e vir é controlado de maneira absolutamente insana. Então, desenvolvi o desejo de ser livre. Viajar e não ter uma casa para chamar de minha me deram liberdade”.
Esse estilo de vida, em um primeiro momento, inspirou Mirna a criar obras bastante leves e efêmeras. “Eu tinha todo um estúdio no meu laptop”, destacou a artista. Então, a leveza se tornou um fardo e ir de casa em casa se tornou algo solitário. Mirna se sentia também como refém da tecnologia, quase sob seu controle.
Senti a necessidade de fazer algo com as minhas mãos.
Foi então que surgiu seu trabalho com cerâmica, a começar em 2019, que ascendeu cada vez mais sobre sua obra prévia, concentrada em performances de vídeo. A cerâmica virou protagonista de suas exibições, sobretudo a atual. Cada peça tem detalhes que a tornam única, sejam técnicas ou motivos, que podem remeter ao sangue, ou mesmo os números repetidos à exaustão, que evocam as vítimas do genocídio em Gaza.
“Nos últimos meses, tenho trabalhado — e trabalhado, e trabalhado, e trabalhado — em concluir essas peças e tentar traduzir emoções em cores e texturas, criando uma espécie de alquimia para compreender o mundo ao redor delas”, explicou Mirna.
Mudar-se para Lisboa, notou, é uma pausa bem-vinda em seu ritmo de trabalho.
No entanto, uma convicção prevalece, seja em um contexto comercial, como é o caso da feira, ou uma galeria experimental como a Nika, ou uma instituição como em Xangai. Ela ainda acredita no sentido de defender o que é certo. “Como palestina, toda a minha vida, me disseram que minha voz não tinha importância. Mas tem. Tem muita importância. E é muito importante que não nos calemos jamais”.
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