A deposição do regime de Bashar al-Assad devolveu a Síria ao instante anterior a quando Rússia e Irã deram cabo dos avanços da oposição — então à margem de uma vitória decisiva. Na ocasião, a “comunidade internacional” conspirou efetivamente contra os revolucionários, no intuito de sufocar os passos derradeiros da Primavera Árabe, que varreu a região. Os eventos das últimas duas ou três semanas giraram o relógio de volta no tempo, a um momento de humores e ensejos revolucionários não somente na Síria, como em seus vizinhos. A contrarrevolução está abalada. A queda de Assad removeu um dos maiores obstáculos aos esforços dos movimentos populares para concluir sua árdua jornada na Síria, em particular, e no chamado mundo árabe, como um todo.
A barragem se rompeu e, quem sabe, os rios da revolução estejam de volta, por fim, a seu curso natural. A força da enxurrada é extraordinária e não parece que será fácil pará-la. Há um sentimento renovado de esperança dentre as pessoas, de que o dia de amanhã possa trazer uma oportunidade para que uma nova onda revolucionária ganhe tração. A queda de Assad pode, sim, dar nova vida à Primavera Árabe. Este é um momento que parecia impossível; subitamente, tornado realidade. Nada fácil, é verdade, mas enfim alcançado. As feridas podem se curar mais rápido do que se pensa; o vigor pode reemergir; e as ruas, avenidas e praças podem se preencher, mais uma vez, de cidadãos comuns, para que deem continuidade àquilo que começaram e que foi brutal e subitamente parado.
Os vizinhos da Síria, salvo a Turquia, temem agora uma nova instabilidade capaz de resultar na queda de seus regimes.
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O Líbano há muito tem se sustentado no regime assadista e já sofre com um colapso político e econômico — a recente invasão de Israel tornou as coisas ainda piores. O Irã enfrenta sucessivas crises internas e seus aliados na Síria e no Líbano sofreram grandes baixas. Contudo, talvez seja o Egito o mais afetado pela eventual onda de insurreições árabes, por muitas razões, sobretudo o crescente descontentamento popular com as crises políticas e econômicas, somadas à opressão do Estado.
A situação na Síria, portanto, abre as portas a muitas possibilidades, em múltiplos níveis. Podemos ver confrontações populares com os regimes árabes ou contestações abertas a seu silêncio e sua leniência — quase absolutos — frente às violações do Estado da ocupação israelense contra palestinos, libaneses e sírios, e seus respectivos territórios.
A celeridade com que os sionistas enviaram suas tropas à zona desmilitarizada para além das colinas ocupadas de Golã demonstrou que temem o fim de um status quo sob o qual a fronteira nominal era protegida pelo regime de Assad. O êxito da revolução popular na Síria claramente faz Tel Aviv ponderar sobre o que virá a seguir. Contrário às alegações do chamado eixo de resistência — e quando foi que o exército assadista da Síria fez alguma coisa para incomodar o Estado ocupante? —, os avanços israelenses sobre o território é uma declaração aberta de que Israel não teme os regimes que controlam a região há décadas sob uma cortina de fumaça do arabismo e que proclamam palavras de apoio absolutamente esvaziadas, sem qualquer sentido ou intenção por trás. Foram esses regimes — lembrem-se disso — que obstruíram quaisquer avanços reais de resistência legítimas contra o Estado de ocupação e apartheid, e que servem a seus interesses.
E o povo árabe sabe bem disso.
Os árabes como um todo veem a Síria dos últimos 50 anos como um reflexo de sua própria subjugação e celebram a esperança de que sua libertação é, enfim, possível. As ruas e praças do mundo árabe podem se lotar novamente; e mais cedo do que pensamos. A opressão em curso das aspirações legítimas que tomam a região como um todo e a negação continuada de direitos humanos básicos são precisamente aquilo que, dada a devida equação, alimentam as revoluções. Bashar al-Assad não apenas ignorou seu povo como tentou reprimir seus anseios populares. Agora, deixou a cena. Regimes em toda a região deveriam aprender uma dura lição com seu fim e aceitar mudanças e reformas fundamentais antes tarde do que nunca.
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Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela rede Al-Araby Al-Jadeed, em 18 de dezembro de 2024
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