À medida que 2024 chega ao fim, grande parte do mundo se prepara para inaugurar o Ano Novo. Na Itália, no entanto, as festividades da temporada foram ofuscadas por um debate acalorado sobre censura, expressão artística e valores sociais, desencadeado por uma controvérsia no coração do tradicional concerto de Ano Novo de Roma.
No centro do alvoroço está Tony Effe, um rapper italiano e ex-membro da Dark Polo Gang, cujo convite para o evento foi recebido com entusiasmo generalizado. Esse entusiasmo, contudo, azedou rapidamente quando figuras políticas de todo o espectro — incluindo representantes do Partido Democrata (PD), Ação e Federação dos Liberais (FdL) — se juntaram a organizações femininas para criticar a escolha. No centro de sua objeção estavam as letras de Effe, consideradas amplamente misóginas e humilhantes para as mulheres.
Enfrentando crescente pressão, a administração do Capitólio rescindiu o convite, uma decisão que o prefeito enquadrou não como censura, mas como uma questão de responsabilidade cívica. “Não se trata do direito inegável de Tony Effe de se expressar ou se apresentar em Roma”, explicou o prefeito. “Trata-se de se os recursos públicos — financiados pelos cidadãos — devem ser usados para destacar um artista cuja inclusão arriscava dividir a cidade e ofender seus moradores. Um concerto de Ano Novo deve unir as pessoas, não as separar.”
Entretanto, essa decisão desencadeou uma reação feroz na indústria musical da Itália.
Vários artistas se reuniram em solidariedade a Effe, com alguns até mesmo se retirando do show em protesto. No Instagram, o rapper expressou gratidão pelo apoio, declarando: “Eu sou sempre eu mesmo; não sei como agir. Eu faço música, e a música não pode ser censurada. Eu escrevo o que vejo e vivo o que escrevo.”
Essa onda de solidariedade, porém, contrasta amplamente com o silêncio que encontrou outra instância de censura no início deste ano envolvendo Ghali, o rapper tunisiano-italiano cuja declaração política ousada durante o Festival de Música de Sanremo gerou ampla controvérsia. Durante sua apresentação, um personagem animado que estrela seu videoclipe “Casa Mia”, Rich Ciolino, se inclinou para sussurrar no ouvido de Ghali. Ghali então se virou para o público e repetiu as palavras: “Parem o genocídio”, que foi amplamente interpretado como uma referência à crise em andamento em Gaza, provocando uma tempestade de fogo.
A reação foi imediata. Das acusações do embaixador israelense de explorar uma plataforma proeminente para espalhar ódio, ao pedido público de desculpas da RAI ao vivo na televisão nacional, a declaração de Ghali foi condenada em todos os lugares. No entanto, ao contrário de Effe, Ghali não recebeu apoio vocal de seus colegas. Nenhum grande artista o defendeu publicamente ou desafiou a censura que ele enfrentou.
O debate transcende Effe e expõe questões mais profundas sobre censura e responsabilidade na arte.
Por que tantos foram rápidos em apoiar Effe — cujas letras foram criticadas como antitéticas à luta contra a violência de gênero — mas permaneceram em silêncio quando a voz de Ghali foi suprimida?
Uma possível explicação está nas estruturas da própria indústria musical. Tony Effe é contratado por uma gravadora compartilhada por muitos dos artistas que o apoiaram, oferecendo a ele uma rede interna de solidariedade. Ghali, no entanto, opera de forma independente sob sua própria gravadora, deixando-o sem o mesmo tipo de apoio institucional. O próprio Ghali parece ter notado esse desequilíbrio, respondendo apagando todas as postagens anteriores de seu Instagram e substituindo-as por uma única imagem comovente capturando o momento preciso em que Rich Ciolino sussurrou em seu ouvido durante a apresentação em Sanremo.
Quaisquer que sejam as especificidades, a questão mais ampla transcende casos individuais. Ela nos força a confrontar os padrões duplos inerentes às discussões sobre censura e responsabilidade artística. A censura é sempre denunciada ou apenas quando é conveniente? E o que isso diz sobre as prioridades sociais quando a misoginia nas letras das músicas é minimizada por aqueles que, de outra forma, defendem a igualdade de gênero? O padrão reflete uma inconsistência inquietante, provando mais uma vez que o apoio social e institucional muitas vezes depende não do mérito da mensagem, mas das estruturas de poder e afiliações que a cercam, expondo um compromisso frágil com a justiça e a consistência no discurso público.
Essa inconsistência reflete uma hipocrisia mais profunda no cerne da própria temporada de festas. À medida que as pessoas (religiosas ou não) se reúnem para celebrar o Natal com alegria e senso de comunidade, o mundo continua a lutar contra a injustiça generalizada. Para os cristãos — inclusive eu, tendo sido criado na fé — a ironia é particularmente gritante: a troca pródiga de presentes e a indulgência na alegria festiva contrastam fortemente com o nascimento de Jesus em Belém, uma cidade dentro da Cisjordânia ocupada por Israel, onde o conflito e a opressão persistem até hoje.
Embora o Vaticano tenha sua cota de problemas, ele não fez nenhuma tentativa de encobrir essas realidades.
No início deste mês, o Salão de Audiências Paulo VI apresentou uma impressionante exibição da “Natividade de Belém 2024” retratando o menino Jesus descansando em um keffiyeh palestino, um símbolo amplamente reconhecido da identidade e resiliência palestinas. Durante seu discurso anual de Natal à Cúria Romana, o Papa Francisco condenou os bombardeios contra as crianças de Gaza, chamando-os de “crueldade, não guerra”. Todavia, seus comentários também atraíram uma forte repreensão das autoridades israelenses, que se referiram aos ataques do Hamas de 7 de outubro de 2023 como justificativa para as ações de Israel e rejeitaram interpretações alternativas como uma discriminação injusta do estado judeu.
À medida que o ano termina, essas controvérsias servem como lembretes das hipocrisias que frequentemente aceitamos em nome da conveniência. A indignação seletiva, seja na música, seja na política, seja na fé, reflete uma luta mais ampla para defender princípios universais em um mundo cada vez mais fragmentado pelo partidarismo e pelo interesse próprio. Se 2024 nos ensinou alguma coisa, é que as linhas entre solidariedade, responsabilidade e silêncio são frequentemente borradas; e é nossa responsabilidade redesenhá-las.
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