A Síria na encruzilhada e os ataques do inimigo

A surpreendente queda do governo sírio, capitaneado por Bashar al-Assad, deixou analistas e todas as pessoas com alguma relação direta com o Oriente Médio, simplesmente boquiabertos. Curiosamente – ou coincidentemente, quiçá coordenadamente – os eventos de mudança de regime e a avança liderada pelo HTS se deram pouco após a estabilização do chamado cessar fogo entre o Estado Sionista e a resistência libanesa, liderada pelo Hezbollah.

O momento posterior ao avanço de Idlib à queda de Damasco, abriu um universo de dúvidas, algumas que jamais serão solucionadas. Especialistas no tema lançaram algumas possibilidades – não excludentes. Primeiro, o que levou ao colapso de Assad? Houve uma desistência da Rússia (e em segundo plano o Irã) em dar suporte a Damasco? A reaproximação com a Liga Árabe aventou a possibilidade de normalização de Bashar com monarquias do Golfo? O governo turco, ao avançar com o chamado Exército Nacional da Síria e suas zonas tampão na fronteira, inviabilizou qualquer acórdão confederal possível? Os Estados Unidos, ao dar suporte, treinamento e logística às SDF (conjunto de forças político-militares do Curdistão sírio, lideradas pelo PYD, afiliado local ao PKK), provocaram um conflito dentro da OTAN (no caso contra a Turquia)? Por outro lado, as forças curdas são inimigas estratégicas dos takhfiristas do Daesh. Haverá uma alternativa ao salafismo outrora pregado publicamente pela liderança do HTS? Enfim, temos mais perguntas que respostas, e algumas constatações irrefutáveis. Vejamos.

Constatações e evidências

Não podemos negar que houve – ainda há – adesão majoritária à derrubada do governo do médico herdeiro do Hafez al-Assad, ex comandante em chefe da força aérea síria, e ocupando o Poder Executivo do país de 1971 ao ano 2000. Seu filho, Bashar, oftalmologista, não era o “favorito na sucessão”, sendo precedido por Bassed. Tendo este falecido em acidente automobilístico, o médico formado em Damasco e com especialização em Londres termina assumindo. Trata-se de mais uma situação onde uma junta militar organizada por um partido político passa a ser um governo personalista (com Hafez) e termina indicando uma sucessão consanguínea.

Se e caso o novo governo não perseguir a maioria sunita (e não vai pois as forças político-militares hegemônicas professam o Islã político) e não exercer a punição coletiva contra alauítas (segmento de confiança na última fase do governo Assad), já terá um bom caminho. Também no campo das hipóteses, caso as instituições cristãs do oriente (melquitas, antioquinos, maronitas) não sofrerem apostasia e puderem operar normalmente, o sectarismo pode não florescer.

LEIA: Moscou é aliada de Bashar, mas …

Mas uma boa convivência não basta. O Apartheid Sionista avançou sobre o contraforte de Golan, pretende aumentar a população de invasores em território sírio e ainda por cima (muito acima na verdade), colocou uma base de vigilância via satélite no Monte Hermon. Não por acaso, a Colônia Europeia financiada pelos Estados Unidos destruiu cerca de USD 50 bilhões em material bélico sírio (incluindo caças de combate, baterias antiaéreas, sistemas de lançamentos de mísseis), explodiu fábricas de medicamentos e se dedica a erradicar qualquer infraestrutura instalada. Desta forma, uma vez que se constitua um governo sírio, mesmo que a Lei Cesar seja suspensa e a Síria venha a negociar com parceiros limítrofes (Turquia, Líbano, Iraque e Jordânia), o país vai estar totalmente exposto à mercê dos colonialistas e sua supremacia aérea.

Alguns reflexos no Brasil

O efeito na colônia brasileira também é difuso. A presença mais antiga, estabelecida e detentora de parte da memória histórica e dos capitais mais antigos, ainda identificam o governo deposto em Damasco como o protetor de minorias (cristãos do oriente, alauítas, ismaelitas, drusos e outros dos quarenta grupos étnico-culturais da Síria) e último bastião do pan-arabismo. Já os refugiados da década passada, recebidos no Brasil em anos recentes, veem ao governo como um regime autoritário e perseguidor de opositores, em especial de forem sunitas. Sendo franco, transparente na verdade, consigo observar os dois pontos como concomitantes.

A Agência Brasil de Comunicação (do governo federal), publicou o seguinte: “Bashar al-Assad decidiu renunciar ao cargo de presidente da Síria e deixar o país depois que grupos rebeldes islâmicos tomaram tomaram várias cidades, incluindo Aleppo, Holms e a capital Damasco. A informação é do Ministério das Relações Exteriores da Rússia e foi divulgada n domingo (8 de dezembro). De acordo com um comunicado, o agora ex-presidente da Síria ainda teria instruído lideranças de seu governo a transferir o poder de forma pacífica.”

Já alguns grupos de mídia, dentre estes aqueles que apoiam o genocídio contra o povo palestino, tiveram uma abordagem heterodoxa. Segundo O Globo, “O grupo armado Hayat Tahrir al-Sham (HTS) já foi filiado, no passado, à Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Por isso, é considerado uma organização terrorista por muitos países, como o Reino Unido, os Estados Unidos, a Turquia e a própria ONU. Esse mecanismo impede que o governo do Reino Unido converse formalmente com o grupo.”

LEIA: A queda de Assad poderá reviver a Primavera Árabe?

O Grupo Band, da família Saad, reproduziu nota da Agência Estado, afirmando “Multidões alegres se reuniram em praças de Damasco, agitando a bandeira revolucionária da Síria em cenas que lembraram os primeiros dias do levante da Primavera Árabe. Outros saquearam o palácio e a residência presidencial depois que Assad e outras autoridades importantes desapareceram. A Rússia, um aliado próximo, disse que Assad deixou o país após negociações com grupos rebeldes e que havia dado instruções para transferir o poder pacificamente.”

O portal UOL, do Grupo Folha, trouxe uma ideia de estabilidade: Secretário-geral da ONU classificou momento como “oportunidade histórica para construir um futuro estável e pacífico”. ‘Após 14 anos de guerra brutal e a queda do regime ditatorial, o povo da Síria pode hoje aproveitar uma oportunidade histórica para construir um futuro estável e pacífico’, falou António Guterres. ‘O futuro da Síria é uma questão que cabe aos sírios determinar, e o meu enviado especial trabalhará com eles para esse fim.'”

Infelizmente, a mídia brasileira não complexifica o problema da viabilidade imediata da Síria como país soberano e – majoritariamente – olha para o Oriente Médio sob as lentes do Departamento de Estado e de Tel Aviv. Sim, a população síria tem o direito de escolher seu futuro. E não, este futuro não existirá se caso os EUA, através de Israel, seguirem bombardeando as instalações fundamentais do país. É urgente conter o inimigo sionista e libertar cada palmo de chão da Síria, expulsando também todas as forças da OTAN do seu território. Que nenhum contingente militar permaneça no solo soberano sem convite formal do governo de consenso nacional a ser formado.

LEIA: Israel toma controle de fontes hídricas vitais em território da Síria

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Sair da versão mobile