Em meados de 2022, Poliana Veiga de Souza, brasileira convertida ao Islã radicada de Vitória, no Espírito Santo, esperava um ônibus junto de uma amiga, após deixarem a mesquita, quando um desconhecido apareceu do nada, gritando contra elas. Ambas usavam hijab — o tradicional véu utilizado pelas mulheres muçulmanas.
“Ele veio em nossas direções nos chamando de fracas, dizendo que nossos maridos gostavam de cortar a cabeça dos outros em seus países e que queriam fazer o mesmo no Brasil”, recordou ao Middle East Eye a jovem de então 28 anos.
Após se converter ao Islã em 2017, essa foi a primeira vez que enfrentou tamanha ameaça. “Ele agiu com enorme violência e intimidou nós duas. Desde então, somos acompanhadas ao ponto de ônibus pelo sheikh ou outro irmão da mesquita toda semana”.
Um estudo de 2022 sobre a islamofobia no Brasil — o primeiro na América Latina — confirmou que casos como o de Poliana se tornaram comuns entre mulheres muçulmanas no país.
Segundo a pesquisa, conduzida pelo Grupo de Estudos de Antropologia em Contextos Árabes e Islâmicos, chefiada pela antropóloga Francirosy Barbosa, 73% das entrevistadas já enfrentaram algum tipo de agressão nas ruas. A grande maioria dos ataques são verbais, mas 10% envolvem agressões físicas.
Mulheres pobres são mais vulneráveis
Segundo Barbosa, professora do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, também convertida, explicou que o Islã cresce firmemente no país há ao menos 20 anos. Novas ondas de migração dos países de maioria islâmica e um número cada vez maior de conversões são centrais ao fenômeno, encabeçado por mulheres — com até 70% de todas as conversões.
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Não há números exatos sobre o tamanho da comunidade islâmica no Brasil, mas estima-se que gire em torno de 700 mil pessoas. Famílias de origem árabe ainda são maioria.
“O Brasil é, em geral, visto como um país cordial. Porém, no que diz respeito à islamofobia, sua cordialidade — caso verdadeira — parece se estender apenas a mulheres que já vem de famílias muçulmanas, têm um carro e vivem em um contexto protegido”, comentou a professora.
Para mulheres muçulmanas que vivem em bairros mais pobres e usam transporte público todos os dias, os riscos são muito maiores.
“Mulheres convertidas estão mais expostas, em termos sociais, porque tomam ônibus e trens e caminham nas ruas”, comentou Barbosa, ao explicar que grupos vulneráveis costumam abarcar trabalhadoras de descendência africana. “Portanto, envolve classe, raça e gênero”.
Rejeição familiar
São muitas as adversidades enfrentadas pelas mulheres que aderem ao Islã no Brasil, destacou Barbosa. Pessoas como Poliana confirmam rapidamente.
“Não é fácil falar sobre isso, mas quando me converti ao Islã, a reação em casa foi pior do que a reação nas ruas. Fui muito incompreendida no meu primeiro ano”, recordou Poliana. Sua família não sabia nada sobre os muçulmanos — “somente o que a mídia lhes dizia”. “Tive que lidar com muitas coisas ultrajantes que as pessoas me disseram. Fiz meu melhor para não responder, para evitar maiores problemas”.
A pesquisa comprovou ainda que 42% das mulheres convertidas ao Islã enfrentam a rejeição de suas famílias sobre sua nova fé.
“Isso está relacionado à forma com que o Islã é retratado pela imprensa”, corroborou Barbosa.
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Segundo o sheikh Ali Abdune, chefe da Assembleia Mundial da Juventude Muçulmana no Brasil, “muçulmanos são vítimas de uma propaganda traiçoeira disseminada pela imprensa há muito, muito tempo”. Abdune reiterou ainda que “a desinformação é tamanha que muitas pessoas não sabem nem mesmo que o Islã é uma religião”.
Abdune enfatizou relatos de muçulmanos não-árabes sobre casos de exclusão ou discriminação no âmbito da família ou do trabalho.
A jornalista Alice Barbosa sentiu essa discriminação na pele diversas vezes. Apesar de morar no México, Alice trabalha principalmente com brasileiros via internet. Especialista em basquete, em particular no setor de arbitragem, Alice costuma ser convidada para entrevistas e programas de televisão. Muitos se surpreendem, no entanto, com seu hijab.
“O desconforto que muitas pessoas no Brasil sentem quando eu ligo minha câmera é palpável”, lamentou Alice ao Middle East Eye. Em algumas ocasiões, houve cancelamento. “Uma vez, uma pessoa deixou bem claro seu motivo. Certamente escolheu as palavras com cuidado, mas todos nós sabemos quais são os códigos dessa exclusão”.
Muçulmanas sem véu
É por essa razão que usar um véu pode ser um processo árduo a muitas mulheres muçulmanas no Brasil. Poliana de Souza levou três anos após se converter para adotar a vestimenta.
Maria Eduarda da Silva, professora de geografia de 24 anos, moradora de Recife, evitou usar o véu em seu primeiro ano de conversão ao Islã. “É um grande passo a ser tomado e envolve uma enorme responsabilidade”, comentou ao Middle East Eye.
Como professora do ensino público, há ainda um código de aparência. “Homens não podem ter barba comprida, por exemplo, então tenho medo de usar o hijab quando estou na escola”. Uma colega, por exemplo, não conseguiu um estágio devido por discriminação. “Uso apenas quando vou na mesquita”.
Os cultos islâmicos em Recife são frequentados principalmente por imigrantes do Senegal, Egito e Paquistão, mas há também muitos convertidos. Maria Eduarda é uma delas, membro de um grupo de mulheres que se reúne todos os meses para discutir questões que especificamente as afetam. Uma psicóloga visitou a mesquita para conversar com o grupo sobre seus traumas.
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“Muitas mulheres sofreram ataques nas ruas. Algumas pessoas jogam água nelas ou as seguem para intimidá-las”, relembrou Maria Eduarda.
Cerca de 83% das entrevistadas afirmaram se sentir constrangidas devido a sua fé. Cerca de 32% não usam o véu em seu dia a dia.
Muçulmanos como inimigos
As entrevistas foram conduzidas ainda em 2021, no terceiro ano do mandato do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. Desde sua primeira campanha, em 2018, Bolsonaro — derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva em novembro de 2022 — alinhou-se a evangélicos neopentecostais, de caráter fundamentalista.
Sua enorme presença social e poder político agravaram a islamofobia no Brasil, observou Felipe Freitas de Souza, um dos autores da pesquisa.
“Uma das implicações da identificação de Bolsonaro e seus apoiadores como membros de uma suposta tradição judaico-cristã é a definição dos muçulmanos como inimigos”, comentou Felipe, então doutorando em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo.
Felipe reiterou a preeminência de numerosos casos de islamofobia durante a campanha e após Bolsonaro assumir posse. “Em seu quinto dia como presidente, Bolsonaro postou um vídeo de uma mulher muçulmana sendo apedrejada e descreveu as imagens como ‘invasão muçulmana no Ocidente”, recordou Felipe, também convertido ao Islã há mais de uma década.
A ascensão neopentecostal no Brasil não é novidade. De fato, há um crescimento constante de suas congregações há décadas. Todavia, a confluência de seus segmentos com a extrema-direita é um fenômeno recente, que coincidiu com a adoção de símbolos israelenses em muitas igrejas evangélicas.
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“Bandeiras israelenses são vistas em templos em todo Brasil”, confirmou Felipe. Muitos desses grupos creem na tese escatológica de que o advento do Messias será acelerado caso judeus — isto é, sionistas — tomem controle da chamada Terra Santa. Para eles, a questão palestina não tem qualquer historicidade e os palestinos são vistos como inimigos. “Essas ideias contribuem com a normalização da violência e da islamofobia”.
Não é coincidência que 73% das mulheres muçulmanas entrevistadas identificam os evangélicos como grupo que mais lhes discrimina. Muitas delas sofrem essa realidade em casa, com relatos de parentes evangélicos que assediam e intimidam mulheres convertidas.
Críticas à comunidade islâmica
Francirosy Barbosa e Felipe de Souza, porém, denunciam que a comunidade islâmica tampouco costuma colaborar com seus nichos mais vulneráveis no que concerne a islamofobia, sobretudo contra mulheres convertidas.
“Muitos líderes muçulmanos no Brasil preferem falar de intolerância religiosa de maneira geral, ao crer que o termo ‘islamofobia’ é muito negativo e pode ‘piorar’ as coisas’”, explicou Barbosa. Para ela, há um reforço à islamofobia nesta própria corrente de pensamento. “As comunidades muçulmanas falharam em construir representatividade. Hegemonicamente, são árabes, que se esquecem de incluir mulheres, negros e pobres em suas questões”.
O resultado é que trabalhadoras que vivem nas periferias brasileiras não têm representação — ou sequer proteção — dos líderes de suas comunidades.
Os pesquisadores entrevistaram 653 muçulmanos — na maioria, mulheres. Para Barbosa, isso é sinal de que sentem uma urgência para denunciar o que passam.
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“A violência deixa graves consequências em sua saúde mental. Muitas se queixam de depressão e baixa autoestima”. Muitas se distanciam de sua fé. “Não podemos ser negacionista e fingir que a islamofobia não existe no Brasil”, advertiu Barbosa.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 18 de dezembro de 2022.