Em Zahra, bairro alauíta no subúrbio de Homs, no oeste da Síria, um toque de recolher tácito e orgânico tomou forma desde a queda do regime do ex-presidente Bashar al-Assad, no início de dezembro de 2024. Com a ascensão do Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) ao poder, membros da comunidade alauíta — à qual pertence Assad — passaram a expressar receios de sair às ruas após o pôr do sol.
O HTS estabeleceu checkpoints por toda Zahra e outros bairros predominantemente alauítas, ao conduzir buscas casa por casa e deter indivíduos sem notificação. Segundo seus oficiais, as buscas nos bairros em questão seguem o objetivo de localizar “reminiscências” do antigo regime, com a prisão de centenas de pessoas.
Tensões na região escalaram consideravelmente desde o fim de dezembro, quando, segundo relatos, correligionários assadistas promoveram confrontos com militantes do HTS na província costeira de Tartus, além de Latakia e Homs.
Na mesma época, a minoria alauíta realizou protestos nessas regiões, para expressar sua frustração sobre o sentimento crescente de insegurança e reivindicar uma administração verdadeiramente inclusiva.
Em 3 de janeiro, forças do HTS adentraram no bairro de Zahra e evacuaram numerosos prédios. Mahmoud*, residente de Zahra de 26 anos, afirmou ao Middle East Eye que membros do HTS enfileiraram moradores nas ruas enquanto revistavam suas residências. Sua própria casa, onde vive com sua família, comentou Mahmoud, também foi alvo de revistas.
“Eles nos andaram deixar nossas casas carregando apenas pertences de valor”, relatou Mahmoud. “Lá embaixo, checaram a identidade de cada um de nós, em busca de pessoas que tiveram algum laço com o regime de Assad”. Na Síria, ao vasculhar documentos, costuma ser possível deduzir a comunidade a que pertence um indivíduo por seu nome, lugar de origem e mesmo endereço.
Mahmoud reiterou que, ao retornar a seu apartamento no quarto andar, testemunhou dois homens sendo espancados por membros do HTS nas ruas abaixo. Em um registro que gravou naquele dia é possível ouvir um homem gritando “Peguem ele”, seguido por um barulho de tiro que ecoou no ar.
Questionado sobre as razões dos ataques, Abu Khaled, membro do Serviço de Segurança Geral do HTS, negou ao Middle East Eye que sua organização tenha ferido arbitrariamente qualquer cidadão. “Estamos aqui para restaurar a segurança, proteger as pessoas e estabelecer um Estado de direito”, reiterou o oficial. “Não estamos aqui para impor nada a ninguém. Ao contrário, queremos coexistir com todo mundo”.
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Estigma
Assad, sua família e muitos membros do alto escalão de seu governo e de suas Forças Armadas são alauítas, um comunidade que abrange aproximadamente 10% da população na Síria. Esta associação incitou temores na comunidade de que sejam alvejados pelas novas autoridades no país. O HTS, no entanto, prometeu mais de uma vez que todas as minorias serão protegidas e respeitadas.
As raízes historicamente rurais e modestas de boa parte da população alauíta também exerceram um papel em seu alinhamento com o antigo regime. Autoridades promoveram oportunidades de educação formal no exterior, em países como Rússia ou Irã, como forma de preservar sua lealdade. Muitos alauítas também foram influenciados a seguir carreiras no funcionalismo público, em vez de se aventurar como comerciantes e empreendedores.
Essa dinâmica é particularmente notável nas regiões costeiras, com uma alta concentração de funcionários públicos, junto a uma tradição campesina embasada em áreas montanhosas, porém férteis, com conexões reforçadas, pelas políticas de Assad, ao aparato estatal.
Contudo, apesar dos laços históricos, seus privilégios jamais estiveram realmente assegurados durante os 53 anos de dinastia Assad.
A estigmatização dos alauítas — alimentada pelo próprio governo assadista — se reflete na geografia de Homs. Bairros alauítas, como Zahra, se instalaram no coração de áreas predominantemente sunitas, criando um senso de guetização e isolamento crescente da comunidade.
Por mais de um mês, no entanto, com a ascensão ao poder do HTS, os alauítas vivem com medo de eventual vingança.
Prisão de ex-soldados alauítas
O irmão de Fatima*, ex-membro de uma unidade de elite do exército da Síria, conhecida como Forças Tigre, ou Quwwat al-Nimr, foi detido pelo HTS durante uma incursão no apartamento que compartilhava com outro irmão no bairro de Wadi al-Dahab neighbourhood, outro distrito alauíta na cidade de Homs.
Segundo a mulher de 56 anos, em conversa com o Middle East Eye, em 2 de janeiro, por volta das 8h00 da manhã do horário local, membros do HTS invadiram a residência da família e levaram seu irmão, Haydar*, um ano mais velho, que permanece incomunicável desde então.
Na tentativa de descobrir seu paradeiro, Fatima abordou o HTS em 11 de janeiro e foi informada de que Haydar fora levado a interrogatório.
Yahya*, outro ex-membro do exército assadista, ressoou o relato da captura de familiares dentro de sua residência, no bairro de Zahra. Seu primo, de 21 anos, foi apreendido em 3 de janeiro, também incomunicável desde então.
“Eles nos fizeram deixar nossas casas para conduzir revistas”, declarou Yahya. “Alguns de nós fomos selecionados para continuar do lado de fora após acabarem as buscas. Entre eles, estava meu primo. O restante de nós voltou para dentro, proibido de ver o que estava acontecendo das varandas ou janelas. Eu desobedeci e vi os homens separados de nós — uns cinquenta deles; entre eles, meu primo — sendo agredidos com socos e pontapés”.
“Bandeiras do Estado Islâmico e da Frente al-Nusra eram vistas nos veículos”, acrescentou Yahya.
Conforme Yahya, a percepção geral entre os alauítas é de que a composição e os métodos do HTS permanecem vagos, sem que as pessoas consigam saber quem são ou o que representam seus membros como instituição.
‘Poderiam ter avisado’
Durante os instantes finais antes da tomada total do país pelo HTS, o Ministério da Defesa assadista ordenou suas equipes a abandonarem seus postos, baixando as armas e trocando seus uniformes em favor de roupas civis. Hussem*, ex-funcionário público no setor de saúde, confirmou o relato.
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“O governo nos alertou para evacuar na noite de 7 de dezembro”, relembrou Hussem, radicado em Damasco, originário de Homs. “Contudo, tivemos de esperar até as três horas da madrugada — já 8 de dezembro — para deixar o local. A meu ver, tudo isso era parte do acordo de Assad com os israelenses para garantir sua fuga, de modo que Israel poderia atacar nossos arsenais sem interferência”.
O Middle East Eye não traçou evidências documentadas entre a fuga de Assad e um acordo com Israel. No entanto, relatos surgiram de que o ex-presidente compartilhou informações sensíveis de seu exército com Tel Aviv, em troca de salvo-conduto para Moscou.
Desde o colapso do regime assadista, Israel conduziu centenas de ataques aéreos a posições militares na Síria, além de uma invasão por terra que capturou ilegalmente toda a zona neutra — estabelecida sob acordo — ao longo das colinas ocupadas de Golã.
O governo, segundo Hussem, ainda tinha meios para resistir aos avanços, mas escolheu não fazê-lo, em favor da fuga e da autopreservação.
Hussem e muitos outros — parte de uma contingente de trabalhadores associados ao antigo regime — se veem agora diante de uma árduo processo de reconciliação, conhecido em árabe como taswia. Este processo, em âmbito formal, requer entregar documentos militares e armamentos, e se apresentar a repartições designadas pelo governo de transição.
As filas nesses centros se estendem por horas, ou mesmo um dia inteiro, sem garantias, porém, de que a situação seja regularizada.
No caso de Hussem, ao se apresentar com seu documento de identidade militar, em 31 de dezembro de 2024, recebeu em seu lugar um pedaço de papel escrito à pressa, com seu nome, data e endereço do centro de reconciliação.
A natureza rudimentar do documento, sem carimbos oficiais ou outros selos, alimentou em Hussem um velho temos de deixar Zahra.
* Os indivíduos entrevistados falaram em condição de anonimato; seus nomes foram alterados.
Reportagem publicada originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 17 de janeiro de 2025.