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Síria além da Casa de Assad: Reconstrução e desafios

24 de janeiro de 2025, às 09h38

Retrato do ex-presidente sírio Bashar al-Assad após a queda de seu regime, em um quartel da Guarda Republicana na capital Damasco, em 4 de janeiro de 2025 [Emin Sansar/Agência Anadolu]

Pouco mais de um mês se passou desde que o regime assadista foi enfim deposto, após 54 anos de ditadura na Síria. Os dias que sucederam 8 de dezembro, quando o presidente Bashar al-Assad fugiu a Moscou foram marcados por celebrações nas ruas do país e no exterior — uma alegria sem igual, ao menos desde que a Síria conquistou sua independência da França, em 1946. O povo vive desde então um surto de adrenalina, muito embora a queda de Assad tenha trazido à luz uma série de desafios na reconstrução de seu novo Estado. A história nos mostra que revoluções não são lineares e que dias difíceis aguardam a Síria pós-Assad.

O Hay’at Tahrir Al-Sham (HTS), grupo oposicionista que, em último caso, conseguiu destituir Assad, comanda hoje uma gestão interina, supostamente transicional, no qual seu líder, Ahmad al-Sharaa, tornou-se o governante de facto da Síria, enquanto a presidência permanece vacante. Al-Sharaa nomeou Mohammed al-Bashir ao cargo de primeiro-ministro, que — em troca — apontou figuras de seu antigo Governo de Salvação Nacional, estabelecido na província setentrional de Idlib, para servirem na capital Damasco. Para a nova gestão, com prazo de validade até 1º de março, de acordo com al-Bashir, faz sentido empoderar o Governo de Salvação Nacional. Contudo, certamente haverá indignação popular caso não transpareça um roteiro à frente, rumo a instituições mais sólidas e inclusivas, incumbidas de organizar eleições.

O HTS abandonou sua filiação à Al-Qaeda em 2016, com um novo discurso de inclusão e respeito à diversidade na Síria. E enquanto al-Sharaa insiste que sua organização será desmantelada, ainda é preciso construir confiança entre o povo sírio. Para uma população que durante décadas e décadas ouviu dizer que qualquer “grupo islamita” seria sinônimo de “terrorismo”, esta não é uma tarefa simples. Seu histórico em Idlib permanece ambíguo, com uma gestão relativamente competente do Governo de Salvação Nacional, mas por vezes manchada por tendências autoritárias do HTS. Os sinais até então são positivos, mas popularidade por protagonizar a queda Assad não equivale a legitimidade. Haverá um desafio de convencer também a comunidade internacional nesse quesito, embora uma gestão tecnocrata, semelhante àquela adotada em Idlib possa ser um bom começo.

Em termos geopolíticos, a recente invasão de batalhões israelenses à Síria impõe uma ameaça imediata à integridade territorial do país. A ocupação das colinas de Golã é ilegal sob a lei internacional; da mesma forma, os comentários de Benjamin Netanyahu, de que as terras sírias serão “parte de Israel para toda a eternidade” são deveras preocupantes. Ainda assim, os ataques das forças coloniais à Síria pós-Assad pouco surpreendem. Apesar de evitarem propagandear sua simbiose de longa data, sempre houve uma aceitação tácita em Tel Aviv de que a ditadura assadista seria melhor — para a ocupação — do que a alternativa. Sobre a ocupação de seu território, Assad certamente mais ladrou do que mordeu, como parte apenas nominal do chamado “eixo da resistência”, bastante auspicioso à palavra favorita dos regimes ocidentais e colaboracionistas no Oriente Médio: estabilidade. O fato de que a incursão e os bombardeios mal esperaram a fuga de Assad mostra que Israel tem medo.

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Outra ameaça à integridade territorial da Síria repousa no Oriente, em uma região de tendências separatistas controlada pelas Forças Democráticas da Síria (FDS), grupo que guardava expectativas de governar a região junto ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), criminalizado pela Turquia. Com a queda de Assad, a região leste se viu incapaz de manter seu status quo semiautônomo, sem engajamento direto com as comunidades locais — sobretudo diante da falta de popularidade do grupo, com muitos árabes e sunitas avessos a sua ideologia socialista. O FDS controla um grande território, que detém a principal fonte de petróleo da Síria, para além de terras agrárias que sustentam boa parte da economia nacional via produção de grãos e algodão.

Além disso, embora a maior parte da comunidade internacional tenha celebrado a queda de Assad, a retórica sobre o governo transicional permanece fria. O HTS continua designado como grupo terrorista pelas Nações Unidas, União Europeia, Estados Unidos e Reino Unido e passos para reverter a medida têm vacilado. Recentemente, os ministros de Relações Exteriores da França e da Alemanha visitaram a Síria, ao ostentar, de formas desconcertante, sermões à Síria sobre como respeitar as minorias — um país historicamente conhecido como uma colcha de retalhos de identidades, culturas e religiões distintas, vivendo em harmonia por milênios, até que o advento da desconfiança assadista. Receber sermões neste sentido de um dos antigos ocupantes da Síria, pós-Primeira Guerra Mundial, é particularmente alarmante. Segmentos da imprensa também compartilham dessa mentalidade colonial. Jeremy Bowen, respeitado jornalista da BBC, conseguiu uma entrevista exclusiva com al-Sharaa dias após a queda de Assad e preferiu concentrar suas perguntas sobre a possibilidade de que o governo banisse o consumo de álcool no país. Diante de todas as questões que pairam sobre a Síria — reconstrução, relações regionais, justiça de transição — podemos dizer que Bowen desperdiçou sua pergunta ao expor uma perspectiva essencialmente eurocêntrica, ao ponderar sobre quais valores seriam “aceitáveis” ou não na Síria pós-Assad.

A Síria foi um dos primeiros Estados que se engajou nos protestos da Primavera Árabe, em 2011. A certa altura, parecia estar a caminho — embora preliminarmente — de conquistar sua democracia, à medida que forças contrarrevolucionárias avançavam no Egito, na Líbia, na Tunísia e no Iêmen. Alguns milícias pró-Assad na região costeira desfrutam ainda de armamentos e chegaram a confrontar forças do novo governo. Embora estas tenham se decepcionado com a maneira com que Assad fugiu do país, e sua notável indiferença para com as dezenas de milhares que morreram em seu nome, sabem que, com sua queda, perderam patronagem. Alguns, mais suscetíveis à influência do Irã, parecem temer agora que se estabeleça um suposto “Estado sunita”. Egito e Emirados Árabes Unidos, por sua vez, tem apreensões ímpares, sobre o desenvolvimento de um Síria democrática eventualmente comandada por “islamitas”. Vale notar que os Emirados foram um dos últimos Estados árabes a estender a mão a Assad para salvar seu regime, em suas últimas 24 horas. Quaisquer ações contrarrevolucionárias, porém, virão provavelmente de grupos ou partidos financiados por tais regimes, sem a intervenção direta das partes.

Que a Síria, neste sentido, permaneça alerta.

Economicamente, dizer que a situação na Síria é desafiadora seria um enorme eufemismo. Por anos, Assad dependeu do tráfico de captagon para a circulação de capital, resultando no que se tornou, na prática, uma narcoeconomia. Anos de má gestão fiscal por corrupção do governo deixaram ao governo transicional uma herança desastrosa. Sanções internacionais foram corretamente instituídas contra personalidades do antigo regime. Embora os Estados Unidos tenham atenuado certas restrições humanitárias e concedido licenças temporárias para exportação de energia, as sanções em si continuam em vigor. Estados europeus, por sua vez, deixaram bastante claro que o caminho pelo fim das sanções está ligado a uma noção vaga de boa governança, embora não faça sentido diante da existência das próprias sanções. Caso a ideia fosse garantir o impacto econômico ao regime de Assad, esta variável já não existe mais. Uma Síria sem sanções seria fundamental para começar seu imprescindível processo de reconstrução, com menores tensões.

Vinculado à situação econômica está o desafio do Estado sírio em assegurar serviços básicos à população. Água, eletricidade, gasolina e insumos alimentares se tornaram escassos ou foram racionados nos anos derradeiros do regime assadista. Para o governo de transição, resta uma tarefa descomunal de garantir que todos os cidadãos tenham acesso a essas demandas. A Síria é um Estado falido há pelo menos uma década; toda a sua economia se canalizou em manter o regime de Assad e seus crimes de guerra contra a população. Dar essa reviravolta em âmbito doméstico certamente não acontece da noite para o

Podemos dizer que o maior desafio é interno, relacionado a uma mudança de cultura e mentalidade necessária entre a população. Viver por mais de meio século sob autoritarismo tem suas próprias consequências. Um velho jargão dominava bem a Síria assadista: “As paredes têm ouvidos”. Um ambiente de desconfiança foi encorajado, semelhante à Alemanha nazista ou a Rússia stalinista, onde qualquer indício de dissidência seria delatado. Neste ambiente de longa data, onde cidadãos foram incitados a tanto e a sociedade se tornou cada vez mais individualista — com as pessoas de cabeça baixa dizendo “Sim, senhor. Senhor” —, construir uma democracia plural e um Estado de direito não é tarefa fácil. Além das instituições, que o governo de transição tem como prioridade, desenvolver a solidariedade dentre as comunidades é mais que crucial. Grupos da sociedade civil têm um papel fundamental aqui.

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Espera-se que uma conferência de diálogo nacional reúna sírios de toda a parte, para discutir e formular o futuro do Estado. Há um consenso, contudo, de que tal iniciativa não se pode apressar, feita adequadamente e sem ser tratada como apenas formalidade. Redigir uma nova Constituição será imperativo e eleições precisarão ser planejadas — embora al-Sharaa possa permanecer onde está pelos próximos quatro anos, segundo acordo. Isso não é necessariamente algo ruim, sem apressar o voto de uma população que provavelmente nunca votou, ao menos desde 1945. O voto tampouco é arauto imediato da democracia. Afinal, a democracia se estende além da urna, via diálogo nacional apropriado, entre os cidadãos, como sólido primeiro passo. Ao mesmo tempo, eleições são imprescindíveis e aguardar mais do que três ou quatro anos fará com que as pessoas duvidem do governo transicional, sob apreensão crescente de que este monopolize o poder — como fizeram os baathistas e assadistas no passado. Ainda assim, antes das eleições, para que estas sejam válidas, é fundamental resolver a questão dos milhões de deslocados — interna e externamente. Um censo também se faz urgente para garantir o voto de cada cidadão.

Outro desafio e prioridade na Síria é avançar rumo à justiça, ao responsabilizar criminosos de guerra do antigo regime, especialmente após se confirmar que mais de cem mil pessoas desapareceram nas prisões de Assad — incluindo a infame prisão de Sednaya —, para além de covas coletivas recentemente exumadas. Pequenos passos foram tomados por outros Estados para indiciar oficiais de baixo escalão, mas o próprio Assad e seus associados íntimos demandam encarar a justiça.

Em 2018, comentaristas e políticos insistiam que Assad havia vencido a guerra, ao promover um discurso pró-normalização — sobretudo após pandemia de covid-19. Estados ocidentais começaram discretamente a se engajar ou ao menos exercer algum lobby em nome do regime assadista. Se tais Estados já estavam dispostos a fazê-lo junto a um regime responsável por crimes de guerra e lesa-humanidade, com centenas de milhares de prisioneiros políticos em condições inimagináveis, seria razoável pressupor que instituiriam relações com um governo de transição.

A Síria enfrenta, no momento, incontáveis desafios, que começam a despontar um por um sem que a sombra de Assad os obscureça. Agentes regionais e a comunidade internacional têm, contudo, de fazer sua parte, para ajudar — ou ao menos não impedir — que as flores da Primavera enfim deem furtos.

A opressão não é para sempre. Há solidariedade para além das fronteiras dentre o povo da Síria e da Palestina ocupada. A resiliência inspiradora de Gaza demonstrou que nenhum opressor é grande demais para que não se resista. Os 11 dias que levaram para que caísse a ditadura de Assad — após 14 anos de levante e guerra civil — são prova disso, assim como as notícias do cessar-fogo em Gaza. A queda de Assad foi celebrada em Gaza, assim como a resistência palestina nas ruas da Síria.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.