Ainda creio que é injusto julgar a performance ou mesmo criticar a recém instaurada administração na Síria, que sequer completou dois meses no poder. Podemos fazê-lo em países estáveis, com instituições sólidas, economia forte, recursos abundantes, administração moderna, sociedade coesa, identidade nacional abrangente, constituição de longa data e um sistema político baseado no consenso, sobretudo mediante uma classe média estabelecida, com cultura política avançada e condições de vida, no mínimo, razoáveis — um país que vive em paz, sem ingerência de terceiros, incluindo seus vizinhos. Nada do que a Síria desfruta no momento.
O novo governo herdou um país em frangalhos, um território dividido, instituições abaladas e uma sociedade na miséria, com fissuras internas profundas, cujas identidades locais parecem superar sua identidade nacional. Neste contexto, facções armadas se acostumaram a comandar seus bastiões sob a lógica da guerra, com pouquíssimos recursos disponíveis, pilhados por décadas e décadas por agentes externos, incluindo quatro exércitos estrangeiros posicionados em suas terras.
Tampouco há um consenso entre as elites sobre a estrutura do Estado, a constituição ou até mesmo o sistema de governo. Enquanto as elites se preocupam com grandes questões políticas — constituição, democracia, liberdades cívicas, Estado e religião —, e correm para preencher os cargos públicos agora vagos, o restante da população luta para sobreviver, diante da falta dos recursos mais básicos, como, eletricidade, água e combustível, sem falar em educação, segurança, saúde e outras coisas mais, cujo acesso pode parecer senso comum, como se uma dádiva espontânea da natureza.
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Apesar de tudo isso — e para sermos justos —, devemos reconhecer que a nova administração alcançou duas importantes conquistas: preservar a paz civil, ao impedir incidentes generalizados de vingança ou retaliação entre os grupos distintos da sociedade, um dos maiores receios de uma Síria pós-guerra, que quiçá procrastinou a queda de Bashar al-Assad; e preservar as instituições, sem incidentes amplos de pilhagem ou sabotagem, em meio ao processo de transição.
Sobretudo, devemos notar algo de extrema importância: desde que a nova gestão entrou em cena, enfrenta pressão de três partes conflitantes, que lutam para achar um equilíbrio, por vezes incitando o caos e o tumulto no Estado ou tomando decisões ruins, das quais logo recuam. Primeiro, a sociedade síria como um todo, que espera que a nova gestão seja eficaz política e economicamente, para além do campo de segurança pública, ao cumprir as aspirações e ambições dessa nova fase nacional. Segundo, os próprios apoiadores da nova administração, que acreditam serem eles — responsáveis diretos pela queda de Assad — têm o direito de governar conforme sua própria visão. Terceiro, a comunidade internacional, que demanda provas e mais provas de que a nova administração abandonou seu passado e não buscar monopolizar o poder.
Depois de tudo isso, podemos fazer observações que, caso continuemos a ignorar, arriscam cair no campo do esquecimento. A mais importante e válida dessas observações está no erro de seguir com o atual estado de vácuo constituição, sobretudo após a suspensão da Constituição de 2012. Não sabemos, por exemplo, as bases constitucionais sobre as quais governa a atual gestão, tampouco os limites dos poderes do novo presidente interino ou sequer a duração da transição. Tampouco sabemos a razão pela qual a emissão de uma declaração constitucional se condicionou à realização de uma Conferência de Diálogo Nacional, “que pode levar meses em preparativos”.
Outra observação está no fato de que, considerando o ritmo lento dos avanços políticos, há uma pressa deveras dissonante em determinar o status das instituições econômicas, sobretudo do setor produtivo.
Como gestão interina, o governo atual carece de autoridade para tomar decisões majoritárias que afetem o futuro e o destino do país. A gestão sabe também que não tem mandato para firmar, por exemplo, um eventual “acordo de paz” com Israel, ou até mesmo determinar o destino do setor público, incluindo privatização, em parte ou todo; demissões em massa; vendas e concessões de recursos estratégicos, como energia ou transporte; e assim por diante. Tudo isso é direito exclusivo de um governo eleito, escolhido com base em uma plataforma apresentada de maneira transparente ao povo, que deve ser incluída nos próprios alicerces da constituição.
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Uma terceira e última observação: a atual gestão não será capaz de governar com base somente em uma rede de alianças regionais e internacionais que ainda busca estabelecer, apesar de sua importância, enquanto carece de uma aliança nacional ampla em seu próprio território, com base no consenso e no pacto social. Isso se deve ao fato de que a legitimidade do governo é fruto da satisfação do povo e sua força emana da vontade popular.
Destacamos tudo isso em nome de uma preocupação para que este experimento da nova Síria obtenha êxito, com toda a ajuda de que podemos dispor, porque seu fracasso — que Deus nos perdoe — seria o mais absoluto caos.
Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela rede Al-Araby Al-Jadeed, em 5 de fevereiro de 2025.
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