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O ‘fardo do homem branco’: Trump, Musk e a mentira da perseguição dos africâneres

12 de fevereiro de 2025, às 10h12

Protestos de oposição ao novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em Los Angeles, Califórnia, em 31 de janeiro de 2025 [Sarah Reingewirtz/MediaNews Group/Los Angeles Daily News via Getty Images]

Com toda a clareza moral de um homem que certa vez recomendou injetar cândida para tratar coronavírus; sugeriu recentemente anexar a Groenlândia e, segundo relatos, pensou que bombas nucleares seria uma “ferramenta divertida” para controlar tornados, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, resolveu agora abraçar a causa dos brancos supostamente perseguidos na África do Sul. Em sua mais recente fantasia geopolítica, a doutrina de Trump — isto é, uma combinação, em partes iguais, de ignorância, prepotência e distorção dos fatos — insiste agora que a África do Sul estaria vivenciando uma espécie de surto genocida contra fazendeiros brancos. Sua solução? Revogar toda a assistência americana ao país.

Seria um episódio cômico de uma história alternativa se não fosse tão transparentemente falacioso. Os brancos sul-africanos, apesar de lamentações solenes de vitimização por parte de alguns, continuam a controlar a vasta maioria das terras aráveis da África do Sul, com estimativas em torno de 70 a 80%. A economia do país, ainda profundamente alicerçada em décadas de privilégios estruturais do regime de apartheid, garante que a ampla maioria daqueles mais ricos e dos principais empresários ainda seja branca. A noção de que os africâneres seriam perseguidos é tão razoável quanto a ideia de que Mar-a-Lago seriam refúgio da classe trabalhadora.

E quem melhor para promover tamanha mentira do que Elon Musk, o intrépido garoto-propaganda do regime de apartheid?

Musk, com seu contumaz cosplay de vítima perseguida, enquanto abusa de suas plataformas para amplificar as vozes de supremacistas brancos na Grã-Bretanha, Itália e Alemanha, recorre agora a sua considerável máquina de desinformação para promover a mais recente narrativa de Trump. A mãe de Musk, cuja família constitui velhos simpatizantes do nazismo, muito bem documentados, prosperou ainda mais com o sistema econômico de segregação racial por design do apartheid na África do Sul — algo que, com a recente guinada política de Musk, parece ser cada vez menos motivo de vergonha do que seu ethos fundacional. Ainda assim, apesar dos incomensuráveis privilégios que o governo sul-africano pós-apartheid manteve a seus cidadãos brancos, Musk e Trump alegam aos quatro ventos que os africâneres seriam, de algum modo, uma minoria oprimida.

Para somar uma nova camada de ironia, a África do Sul permanece um modelo de constitucionalismo e governança responsável, algo que está muito além da imaginação de alguém como Trump, cuja filosofia legal, política sequer supera a falácia de “Somente eu consigo consertar”. A Corte Constitucional da África do Sul — guardiã máxima do Estado de direito no país — tem reiteradamente demonstrado compromisso inabalável para com a legalidade. Quando o ex-presidente Jacob Zuma tentou contornar mandados judiciais, foi detido por desacato. Os tribunais sul-africanas também têm reavaliado com frequência ordens do executivo sob “princípios de racionalidade”, ao garantir que os poderes do presidente não possam ser utilizados por mero capricho ou vingança pessoal.

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Além disso, as leis de reapropriação de terras da África do Sul, que Trump e sua corja buscam retratar como tomada de propriedades particulares, são de fato profundamente embasadas em princípios legais cujo objetivo é solucionar injustiças históricas. Este processo transcorre mediante provisões constitucionais que buscam garantir que a reapropriação ocorra de maneira justa, igualitária e conforme os interesses públicos. As indenizações se determinam sobre diversos fatores, como o uso da terra e seu histórico de aquisição, para que os esforços de reforma estejam continuamente alinhados aos imperativos constitucionais, em vez de apreensões ou confiscações porventura arbitrárias. O enquadramento legal que orienta a redistribuição de terras na África do Sul é uma resposta ponderada e meticulosamente calculada a séculos de expropriação e marginalização, em vez de uma espécie de assalto irresponsável como afirmam facciosamente Trump, Musk e seus asseclas.

Ponha isso em contraste com os Estados Unidos, onde a impunidade de Trump é a marca registrada de sua administração. Atacar oponentes políticos? Confere. Ameaçar perseguir críticos? Confere. Demitir funcionários públicos por não se ajoelharem perante o novo rei? Confere, confere, confere. Trata-se de uma presidência caracterizada pelos caprichos de um homem que vê seu atual Departamento de Justiça como nada mais que seu escritório pessoal de advocacia. As bravatas de Trump certamente não sobreviveriam ao sistema judiciário da África do Sul, onde os tribunais defendem a Constituição, em vez de capitular aos impulsos erráticos de um aspirante a autocrata.

Ainda mais perturbador é o histórico de perdões presidenciais concedidos por Trump, uma perversão grotesca do conceito de clemência executiva para recompensar criminosos de guerra, insurrecionistas e lacaios políticos por sua lealdade. Na África do Sul, ao contrário, perdões presidenciais devem passar pelo teste da legalidade, racionalidade e interesse público. As cortes sul-africanas jamais permitiriam que figuras como os lobistas republicanos Paul Manafort ou Roger Stone fossem absolvidas meramente por permanecerem calados. E muito diferente dos Estados Unidos, onde a admiração de Trump por criminosos de guerra, foragidos internacionais, como Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, não tem fronteiras, as cortes sul-africanas demonstraram compromisso para com a lei internacional. Quando o ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir, denunciado por genocídio, pôs o pé na África do Sul, seu judiciário ordenou sua prisão. Mesmo o presidente russo Vladimir Putin recebeu alertas de que, caso atendesse à cúpula dos Brics em Joanesburgo, poderia muito bem sair algemado.

E aqui repousa a verdadeira motivação por trás dos mais recentes ataques de Trump contra a África do Sul: o compromisso inabalável do país para com o direito internacional. A decisão sul-africana de denunciar Israel ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, pelas atrocidades do Estado ocupante em Gaza, fez do país um alvo da ira da Casa Branca. Os Estados Unidos, sempre dispostos a proteger seus aliados de qualquer responsabilidade, batem os tambores sobre mais outra crise facciosa de direitos humanos — desta vez, a suposta vitimização dos deveras privilegiados brancos sul-africanos. Não passa de uma desculpa para punir um Estado soberano por ousar buscar a justiça.

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Mas, quem sabe, a cereja do bolo neste caldeirão de absurdos é o recém-descoberto humanitarismo de Trump em até mesmo oferecer “asilo” aos africâneres, uma população que ainda usufrui de poderio econômico e fortunas geracionais. Isso vindo de um homem que decepou admissões de refugiados e buscou criminalizar requerentes de asilo como supostos invasores; de uma gestão que separa crianças de seus pais ao longo da fronteira. Para que fique claro: refugiados não-brancos que fogem da guerra, da perseguição e da fome? Vocês não são bem-vindos. Brancos sul-africanos, ainda o grupo economicamente hegemônico no país? Nossas portas estão mais do que abertas.

Trata-se de um supremacismo tão descarado que mal precisamos pôr em palavras.

Apesar de seu palavrório sobre “América em primeiro lugar”, as políticas de Trump jamais se trataram de verdadeiro interesse nacional, mas sim consolidação de poderes próprios por meio do medo e da perseguição racial. A África do Sul, em seu compromisso para com a legalidade, a justiça, os direitos humanos e a integridade constitucional, representa precisamente aquilo que Trump e seus facilitadores desprezam: uma ordem legal onde o poder tem limites, o Estado de direito prevalece e os privilégios não são um direito de nascença perpétuo e irrevogável — e por isso, deve se punir todo o país.

A história certamente não será gentil a tamanha farsa, muito menos àqueles que a disseminam. Mas, vale dizer, os perpetradores do apartheid e seus apoiadores supremacistas jamais foram particularmente afeitos à história e à justiça.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.