O direito internacional está lutando por sua relevância. O resultado desta dura batalha deve, provavelmente, mudar toda a dinâmica da política global, moldada pela Segunda Guerra Mundial e sustentada via interpretação seletiva da lei por países hegemônicos.
Em princípio, a lei internacional sempre deveria guardar relevância, se não primazia, no que diz respeito à governança das relações entre os países, pequenos ou grandes, para solucionar conflitos antes que se deflagrem em guerras abertas. Deveria também servir para evitar o retorno a uma era de exploração que permitiu ao colonialismo ocidental, na prática, escravizar todo o Sul Global por centenas de anos.
Tragicamente, o direito internacional, que deveria em tese refletir um consenso global, raramente se dedicou à paz ou investiu genuinamente nos processos decoloniais.
Desde a invasão do Iraque e do Afeganistão à guerra na Líbia e incalculáveis exemplos, no passado e no presente, a Organização das Nações Unidas (ONU) muitas vezes se fez de plataforma para que os fortes impusessem seus arbítrios aos mais fracos. E sempre que os países menores ousassem reagir coletivamente, como costuma ocorrer no foro da Assembleia Geral da ONU, aqueles com poder de veto no Conselho de Segurança e poderio econômico e militar não hesitaram em coagir o restante a entrar na linha, com base na máxima “a força faz o direito”.
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Não deveria, portanto, surpreender ver inúmeros políticos e intelectuais do Sul Global argumentarem que, para além de prestar mera retórica à paz, aos direitos humanos e à justiça, o direito internacional seguiu basicamente irrelevante.
Tamanha irrelevância se pôs às claras nos 15 meses de genocídio implacável conduzido por Israel contra o povo palestino de Gaza, que matou e feriu mais de 160 mil pessoas, um número que, segundo muitas pesquisas e revistas médicas de renome, permanece drasticamente subnotificado.
Ainda assim, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), abriu uma investigação sobre um “genocídio plausível” perpetrado em Gaza, em 26 de janeiro de 2024, seguido por uma decisão histórica de 19 de julho que enfim admitiu a ilegalidade da ocupação israelense na Palestina. Essas medidas pareceram mostram que o sistema internacional de justiça ainda tem pulso, embora fraco. O Tribunal Penal Internacional (TPI), por sua vez, emitiu mandados de prisão contra Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, e seu ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, em novembro, como uma demonstração adicional de que, embora a duras penas, as instituições de justiça centradas no Ocidental são afinal capazes de alguma mudança.
A cólera dos Estados Unidos em resposta a essas medidas foi absolutamente previsível. Washington vem lutando contra a justiça internacional há anos e anos. O Congresso do país sob a gestão de George W. Bush aprovou uma lei ainda em 2002 para proteger os soldados americanos de qualquer “perseguição penal” pelo TPI em Haia, cujo estatuto jamais foi assinado pelos Estados Unidos. O chamado Ato de Invasão de Haia autorizou uso da força militar para reaver oficiais americanos caso detidos pela corte.
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Naturalmente, muitas das medidas de Washington para pressionar, ameaçar e castigar as instituições internacionais se vinculam a sua política externa de proteger Israel, sob as mais diversas desculpas. A indignação global e os apelos por responsabilização após se deflagrar o genocídio israelense em Gaza, contudo, mais uma vez pôs os regimes do Ocidente em uma posição de defensiva. De maneira inédita, Israel se viu diante de um tipo de escrutínio que o reduziu, em muitos aspectos, a um Estado pária.
Em vez de repensar sua política sobre Israel e evitar alimentar a máquina de guerra, os governos ocidentais, em sua maioria, resolveram atacar sua própria sociedade civil por apenas reivindicar a aplicação devida do direito internacional.
Entre os perseguidos, ativistas de direitos humanos filiados à ONU.
Em 18 de fevereiro, a polícia da Alemanha desceu à sede da corporação de mídia Junge Welt em Berlim como se estivesse prestes a capturar um criminoso em série. O prédio foi logo cercado pela tropa de choque, plenamente paramentada, incitando um drama bizarro que jamais poderia ocorrer em um país que se diz democrático. A razão por trás de tamanha mobilização repressiva não foi outra senão Francesca Albanese, advogada italiana de direitos humanos e crítica eloquente do genocídio em Gaza.
Albanese é também, por acaso, relatora especial da ONU para os territórios palestinos ocupados. Se não fosse pela intervenção das Nações Unidas, teria sido presa pela mera razão de ter reivindicado que Israel fosse responsabilizado por seus crimes conduzidos contra civis palestinos.
A Alemanha, contudo, não é exceção. Outras potências ocidentais, encabeçadas pelos Estados Unidos, também tomaram parte desse pânico moral. Washington adotou uma série de medidas graves e problemáticas, não apenas para proteger Israel e a si mesmo da justiça internacional, como para punir as próprias instituições relevantes, bem como seus juízes e oficiais, por ousarem cumprir seu trabalho.
De fato, em 13 de fevereiro, há poucas semanas, os Estados Unidos aprovaram sanções contra o promotor-chefe do TPI, Karim Khan, por requisitar os mandados de prisão às lideranças israelenses. Após hesitação considerável, Khan fez aquilo que nenhum outro promotor conseguiu fazer, ao indiciar, pela primeira vez, lideranças alinhadas ao bloco ocidental. Hoje, Netanyahu e Gallant são foragidos em ao menos 120 países por crimes de guerra e lesa-humanidade.
A crise se aprofunda quando o juiz se torna acusado, como ocorreu a Khan, submetido a ataques e assédio infindáveis por parte da mídia corporativa ocidental, para além das sanções impostas pelo regime em Washington.
Por mais perturbador que tudo isso seja, há um lado bom.
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Resta uma oportunidade para que o sistema político e legal internacional seja, por fim, remendado, com base em novos critérios de justiça que se apliquem a todos os países, bem como seus representantes, sem distinção.
Aqueles que insistem em apoiar Israel praticamente jogaram no lixo a lei internacional. As consequências de suas ações são gravíssimas. Para o resto da humanidade, porém, a guerra em Gaza pode deflagrar um acerto de contas em escala global, uma chance sem precedentes de reconstruir o mundo de maneira mais igualitária, longe de ser moldado pela força das armas, mas sim pela urgência de que se pare a matança e os massacres contra os mais vulneráveis entre nós, sobretudo crianças.
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