Covardia e cancelamento: Política cultural na Austrália e a Bienal de Veneza

Binoy Kampmark
2 meses ago

A covardia é o fino líquido que corre nas veias de muitos organizadores de eventos de cultura, sobretudo em ocasiões que podem provocar algo inesperado. Estes organizadores alegarão ter a mente aberta, ao acomodarem o debate e incentivarem o que, segundo o jargão, seriam “provocações”.

No entanto, a Creative Australia —Conselho da Austrália para as Artes, ligado ao governo em Camberra — decidiu cancelar a participação de Khaled Sabsabi, artista nascido no Líbano, na Bienal de Veneza de 2026, junto de Michael Dagostino, curador da equipe do pavilhão artístico. A medida demonstra que a subversão artística não é, de modo algum, o nome do jogo, mas sim a incontroversa subserviência. Se um órgão público de artes teme que as tetas de que bebe se sequem, certamente cederá e abandonará seus artistas para se prostrar sob o trono de Mamon.

Na atmosfera febril e cada vez mais histriônica da Austrália sobre eventuais polêmicas, debates que supostamente testaria a tão aclamada coesão social são negados ou mutilados até se tornarem irreconhecíveis. Os jornalistas devem seguir pontos editoriais rigorosíssimos, sobretudo no que diz respeito a pautas de interesse internacional. O destaque, é claro, se refere a eventuais críticas às políticas do Estado colonial de Israel — ao ponto de censurar termos consagrados academicamente como “massacre”, “genocídio” e “limpeza étnica”.

Críticas às ações de Israel em destruir Gaza, ao criar um anfiteatro de morte a céu aberto, em tempo réu e aos olhos de todo o mundo, levaram ideólogos e agitadores sionistas — seja na Austrália ou exterior — a evocarem o fantasma do antissemitismo como se sua presença, especificamente no que concerne a solidariedade para com os palestinos, tivesse alcançado novos ápices. Ameaças e ganharam terreno, enquanto o líder da oposição, Peter Dutton, busca garantir votos nas eleições federais. Tamanha doença logo se espalhou, criando raízes desde os círculos artísticos às universidades.

Tudo começou com uma intervenção de um jornal australiano — uma rede de imprensa com que Israel pode contar como meio de propaganda pro bono abaixo do Equador. Yoni Bashan, correspondente sionista do jornal, se infiltrou nas fileiras das forças israelenses em sua invasão brutal à Faixa de Gaza. Após receber uma série de mensagens, Bashan voltou sua atenção à escolha da gestão cultural para representar o país na Bienal de Veneza, ao vascular — com particular racismo — as obras e o passado do artista libanês-australiano, a fim de provar um ponto. Seu trabalho digno da pré-escola encontrou finalmente uma videoinstalação de 2007 intitulada You, que figura a imagem de Hassan Nasrallah, falecido líder do grupo libanês Hezbollah.

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Nasrallah, cuja voz e a imagem aparecem na montagem, foi executado sumariamente nos bombardeios recentes de Israel ao Líbano. Conforme a análise vulgar e despudorada de Bashan — que admitiu em um podcast, “não sou um crítico de cultural”, ao descrever a indústria como “afetada demais para mim” —, a escolha de Sabsabi pela Creative Australia seria “racismo”. Em vez de compreender ou ao menos tentar interpretar o contexto amplo dos horrores do conflito — com que o próprio artista se preocupa, ele mesmo refugiado da guerra civil libanesa — o jornal, por meio de seu fraco articulista, pareceu afoito em revelar um “simpatizante de terroristas”.

A natureza falsamente reveladora da imprensa australiana, junto a um debate no parlamento que abordou um vídeo de 2006 intitulado Thank you very much, mostrando imagens dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, mostrou-se lastimavelmente juvenil. A expressão de choque de Tony Burke, ministro do Interior e das Artes, não expressou nada senão seu despudor em tentar ludibriar o público, como um bom resumo de porque é preciso que deixe seus cargos imediatamente. Dentro de poucas horas da troca no legislativo — que dificilmente chamaríamos de debate —, a autarquia australiana realizou um encontro de emergência de seu conselho executivo, para revogar em unanimidade o contrato de Sabsabi e Dagostino sobre a ida a Veneza. Tudo isso não levou mais do que seis dias após o anúncio do artista, que enaltecia sua “coletividade humana” ao questionar “políticas e ideologias de identidade e convidar o público a fazer o mesmo”.

Graças aos céus, este capítulo indecente provocou respostas e críticas contundentes à decisão do governo australiano. Mikala Tai, figura de destaque no departamento de artes visuais da Creative Australia, nos últimos quatro anos, encaminhou a Adrian Collette, diretor executivo do órgão, uma carta de renúncia como forma de protesto “em apoio ao artista”.

Às demissões se somaram Lindy Lee, artista consagrada e membro do conselho, e Simon Mordant, duas vezes comissário na Bienal de Veneza. De sua parte, Mordant reiterou em entrevista à rede ABC Arts ter “renunciado imediatamente” de sua posição na agência, ao encerrar também seu apoio financeiro. “Houve uma questão posta ao parlamento [na quinta-feira, 13 de fevereiro], que culminou em uma medida sem precedentes de rescisão de contrato”, argumentou Mordant. “Isso é inaceitável em qualquer país do mundo; sobretudo na Austrália”.

Vale notar, o Museu de Arte Contemporânea de Sydney (MCA), que exibiu You em 2009, corretamente questionou como a decisão foi tomada. Em uma declaração ao Australian Financial Review, em 21 de fevereiro, a galeria declarou apreensão sobre “a falta de transparência do processo”, com “ramificações consideráveis para o mercado de arte na Austrália e mesmo a reputação do país no mundo, em um momento em que a busca por maior diversidade de reflexões e vozes artísticas jamais foi tão importante”.

Outras galerias, porém, mantiveram seu compromisso com a covardia e o silêncio — mesmo aquelas cujos recursos não dependem da Creative Australia. Por exemplo, a Galeria de Arte de NSW, que abrigou uma exibição solo de Sabsabi em 2019, alegou apenas “não comentar sobre a matéria”. Liz Ann Macgregor, diretora do MCA por quase duas décadas, apontou a razão para tamanha despudorada reticência: “Penso que algumas pessoas estão preocupadas em desagradar seus doadores, caso digam alguma coisa”.

As equipes pré-selecionadas para o pavilhão da Bienal de Veneza, no entanto, não hesitaram em manifestar suas crítica em carta aberta ao conselho da Creative Australia. “Cremos que rescindir apoio a curador e artista já selecionados é algo antiético, que vai contra a boa-fé e a independência artística conquistada a muito custo, bem como a liberdade de expressão e a coragem moral que repousa no âmago das artes de nosso país, com um papel fundamental a nossa democracia próspera”.

A carta segue a fazer uma pergunta bastante pertinente: “Se a Creative Australia não é capaz nem mesmo de defender sua escolha especializada, por poucas horas sequer, ao abandonar seu processo sob mínima pressão, o que nos diz isso sobre seu compromisso para com a excelência artística e a liberdade de expressão”. A resposta: Nos diz tudo, e mais um pouco.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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