O palestino Abdalla Fadel chegou ao Brasil em 1949, após o início da limpeza étnica que culminou na consolidação do “estado” de “israel” e na Nakba, a expulsão de mais de 700 mil palestinos de sua terra. Ele viveu em Catanduva, no interior de São Paulo, e se casou com a brasileira Vilma Esteves. Abdalla retornou à Palestina com sua esposa em 1974, onde tiveram sete filhos.
Todos os seus filhos conquistaram a cidadania brasileira, incluindo Khaled Abdalla Fadel. Nenhum deles, contudo, algum dia pisou em solo brasileiro. Khaled casou com Nida’h Khaled Abdalla Fadel e com ela teve quatro filhos. Por direito, eles também conquistaram cidadania brasileira. Nenhum tampouco pisou em solo brasileiro, mas esse era um sonho de um deles, Walid Khaled Abdullah Ahmed.
Querido e considerado um garoto muito inteligente na pequena cidade de Silwad, a nordeste de Ramallah, o jovem de 17 anos estava no último ano do ensino médio e se preparava para prestar o vestibular para entrar na universidade. Saía de casa todos os dias às 7h para ir à escola, e voltava às 14h. Também era um atleta: atuava como goleiro no clube de futebol da cidade e cuidava da saúde, com uma alimentação balanceada e exercícios físicos. Nas horas vagas, ajudava com o mercadinho de seu pai, onde são vendidos café, amendoim torrado, caju torrado e outras especiarias.
Um dos grandes sonhos de Walid era terminar os estudos, se formar em alguma faculdade de administração ou economia e viajar a negócios ao Brasil, para pesquisar sobre o mercado de café brasileiro e aprimorar o comércio de seu pai. “Era um apaixonado por economia”, diz Khaled ao site da Fepal, por vídeo. “Sempre dizia que, após se formar, iria ao Brasil para procurar os melhores produtos para o nosso comércio, o melhor café, o melhor chocolate, o melhor caju e tantos outros produtos que comercializamos.”
A construção do sonho de Walid foi interrompida por volta das 4h da manhã do dia 30 de setembro de 2024. Era um domingo. Soldados “israelenses” derrubaram a porta da casa da família e entraram se comportando como animais, relata o pai. Eles permaneceram cerca de 1h30 dentro da habitação, mas não permitiram que Walid se vestisse. Levaram o garoto, de calção e regata, a roupa com a qual ele dormia. Os “israelenses” acusaram o rapaz de diversos crimes contra a ocupação, um deles o de atirar pedras em soldados.
“Até então, havia cantinas para as quais os familiares mandavam dinheiro para os presos comprarem comida de melhor qualidade do que as que recebiam nas celas, bem como produtos de higiene. Havia banheiro 24 horas e chuveiro, mas agora a utilização é restringida a, no máximo, uma vez por semana, e sem água quente”, afirma Khaled. “O que mais se sente é essa piora nas condições das prisões, precárias e desumanas, após o 7 de outubro.”
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Era esse destino que aguardava Walid. Ele foi enviado para a prisão de Megiddo, no deserto de “israel”. O jornal Haaretz relatou que, nesse campo de concentração, são realizados os mais terríveis rituais de tortura contra os reféns palestinos, como choques elétricos, ataques de cães, espancamentos severos e nudez forçada. Muitos não aguentam e precisam ser hospitalizados. Um relatório de 2024 da Comissão de Assuntos de Detentos e ex-Detentos Palestinos apontou para o uso sistemático de métodos de violência sexual, negligência médica e espancamentos rotineiros.
A família não teve mais notícias do rapaz. Ele permaneceu meses incomunicável. Na verdade, Khaled e sua esposa, Nida’h, nunca mais puderam falar com seu filho. E nem poderão. Walid está morto.
A notícia da morte do filho chegou somente alguns dias depois do seu falecimento, por membros das forças “israelenses” que não quiseram dar mais detalhes. Tampouco devolveram o corpo de Walid. Também não permitiram que a família se reunisse no clube para receber as condolências dos vizinhos.
Walid morreu no dia 22 de março, quase seis meses após ser sequestrado e um mês antes de completar 18 anos. O seu julgamento também estava previsto para abril. Sim, Walid foi preso e morreu no cárcere sem julgamento. Era, portanto, inocente.
Um dia antes da morte de Walid, um prisioneiro palestino da mesma prisão de Megiddo foi libertado. No dia 23, ele transmitiu à família de Walid um recado do filho: estava bem de saúde e havia se recuperado dos problemas contraídos na prisão. O pai deveria ficar tranquilo, pois em breve Walid voltaria para ajudar nos negócios.
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Os problemas de saúde de Walid, na verdade, não haviam sido curados. Em 30 de dezembro, três meses após seu sequestro, um médico que o visitou havia detectado um trauma em sua cabeça. Walid também reclamou que não estava recebendo comida suficiente. Pelo menos desde outubro (isto é, pouco após ser preso), também estava com sarna. Em fevereiro, foi visitado novamente por um médico, para tratar a sarna. A autópsia, realizada pelo doutor Daniel Solomon, “israelense” e médico da família, revelou que o jovem ainda tinha erupções cutâneas nas pernas e na virilha, escoriações no nariz, tórax e quadril e sinais de inflamação, talvez causada por infecção.
A perícia, a qual esta reportagem teve acesso, também constatou uma perda extrema de massa muscular e gordura corporal, evidenciada, de acordo com o relatório, pelo abdômen afundado. Walid ainda sofreu de diarreia induzida por colite e desidratação severa. Além disso, foi verificado um corte no seu pescoço. A causa de tudo isso, segundo o relatório, teria sido exatamente a “fome” e “desidratação” prolongadas (como o próprio Walid reclamava) e a falta de cuidados médicos. O corte no pescoço, no entanto, permanece um mistério. Na manhã de 22 de março, conforme o registro médico, ele sofreu uma perda repentina de consciência. Os paramédicos não encontraram sinais vitais, tentaram reanimá-lo e o levaram para uma clínica, apenas para confirmarem a sua morte.
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“A autópsia de Walid indica que os guardas da prisão israelense sistematicamente deixaram passar fome e abusaram dele por meses até que ele finalmente desmaiou, bateu a cabeça e morreu”, declarou Ayed Abu Eqtaish, diretor do programa de responsabilização do Defense for Children International – Palestine. E disse ao site do órgão: “a fome é uma ferramenta de genocídio, buscando enfraquecer e, finalmente, destruir tanto o corpo quanto o espírito de crianças palestinas detidas em prisões israelenses. A morte de Walid não foi um acidente.”
A família de Walid entrou em contato com a embaixada brasileira em Ramallah, mas sabe que apenas os esforços dos diplomatas locais será insuficiente para recuperar o corpo do jovem, que não foi devolvido pelas autoridades.
“Nós pedimos à imprensa brasileira e ao governo brasileiro que pressionem pela devolução do corpo de Walid. É desumano prender um jovem inocente, que não foi julgado e morreu por negligência médica, fome e sede. O mínimo que nós esperamos é que seu corpo seja devolvido para ser enterrado de forma digna, conforme a religião islâmica”, apela Khaled.
Em nota publicada após a notícia da morte de Walid, a Fepal condenou o regime “israelense” e exigiu ao governo brasileiro o rompimento de relações diplomáticas e acordos de cooperação com Tel Aviv, como sendo uma “obrigação moral e legal”.
Como será a vida dos familiares daqui para a frente, sem seu ente querido entre eles? Haverá um grande vazio, diz o pai. A mãe, após mais de uma semana, continua arrasada, sem condições de se comunicar.
“Não é fácil para um pai e uma mãe perderem um filho repentinamente assim, mas como somos muçulmanos devemos acreditar que tudo o que vem de deus um dia volta para deus”, expressa-se o pai. “É através dessa crença que nós teremos de continuar a vida, pois temos outros filhos que devemos cuidar.”
* De São Paulo, com exclusividade para a Fepal. Colaborou com a tradução Ruayda Rabah, da Cisjordânia.
Publciado originalmente em FEPAL
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