Em Eyes on Gaza: Witnessing Annihilation — ou Olhos em Gaza: Testemunhando a aniquilação —, o escritor e professor de direito árabe-americano Khaled Beydoun tece um relato assombroso e profundamente pessoal do genocídio em Gaza, ao equilibrar contundente análise política com reflexões sobre o sua ancestralidade e os indivíduos que deram forma a sua compreensão de justiça e resiliência.
Nossas árvores são resilientes, com raízes profundas nas aldeias palestinas, no sul do Líbano e nas terras adjacentes, indivisíveis de seu solo e sua sociedade. As oliveiras que aqui nascem serão sempre seus filhos, não importa quão longe estejam de suas raízes. Nem distância, nem tempo podem mudar estes fatos, ou apagar a identidade nativa de um povo no exílio.
Sua reflexão de abertura sobre as oliveiras reflete um símbolo central à narrativa de Beydoun, sobre resiliência, identidade e raízes profundas — qualidades que definem a luta palestina. Para o autor, a oliveira é uma conexão viva com sua terra sitiada, uma lembrança pungente de perda, mas também de resiliência. Suas ponderações sobre o amor de seu pai pelas oliveiras e sua reverência à terra ancoram a narrativa em um relato íntimo, porém constituído por verdade bastante universais sobre deslocamento e pertencimento.
Beydoun, cujo trabalho vai desde a pesquisa acadêmica sobre o direito ao ativismo de direitos humanos, enfatiza a importância de adotar uma mensagem capaz de alcançar públicos distintos.
“Sou um professor de direito, esse é meu ganha-pão. Meu trabalho, primeiro de tudo, é ensinar e desenvolver pesquisas”, observou Beydoun. “Mas me vejo também como ativista e é preciso ser flexível sobre como disseminar mensagens a pessoas de origens bastante diferentes”.
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O livro presta homenagem aos homens palestinos, grupo comumente vilificado por narrativas globais. Através das histórias de seu avô, Khaled Nabhan, assassinado por Israel em Gaza durante o genocídio, no último ano, bem como do jornalista Motaz Azaiza, dentre outros, Beydoun confere a seu leitor um retrato repleto de nuances sobre força e dignidade. Os personagens reverenciados pelo autor desafiam estereótipos e ressaltam a humanidade inerente do homem palestino, frequentemente retratado como uma figura bárbara e hostil — como agressor, em vez de vítima de uma violência sistêmica.
A narrativa de Beydoun se torna ainda mais rica por interlúdios poéticos, com versos profundamente evocativos, que expressam a carga emocional de viver sob a ocupação. Tais poemas, francos e diretos, carregados de luto e resiliência, servem de convite ao leitor para se conectar no âmago com experiências vividas por trás das manchetes.
“Não me imagino um poeta, honestamente. Não me vejo como alguém que gosta particularmente de estar nas redes sociais, apesar de passarmos tanto tempo ali”, comentou Beydoun. “Mas eu percebi uma coisa: é preciso se adaptar um pouco para atingir pessoas diferentes”.
Central à análise de Beydoun é sua crítica incisiva do direito ocidental como ferramenta de dominação imperial. Em sua obra, Beydoun cita o autor martinicano Aimé Césaire para ressaltar a violência mascarada como ordem legal:
Estado de direito? Como diz Césaire: “Olho ao redor e onde quer que colonizadores e colonizados estejam frente a frente, vejo apenas força bruta, crueldade, sadismo e conflito”. E à medida que Gaza prevalece como um estudo de caso vivo, vemos um genocídio. A lei, neste sentido, não passa de instrumento imperial, forjado para avançar com os interesses daqueles no poder.
A crítica de Beydoun desconstrói a fachada de neutralidade atribuída à letra da lei, ao expor um papel de legitimação da ocupação e da violência.
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No entanto, sua análise se estende à chamada “guerra ao terror”, um mecanismo, como nos diz o autor, para racializar e vilificar árabes e muçulmanos, ao retratar os palestinos como uma espécie de ameaça tripla — árabes, muçulmanos e combatentes da liberdade —, no intuito de justificar sua opressão na arena internacional.
Para além da metodologia, Eyes on Gaza captura uma mudança global em como se percebe a luta e a identidade palestinas:
Um dos resultados mais extraordinários deste terrível genocídio é vermos, em um grau sem precedentes — seja em escala ou natureza —, uma solidariedade para com a Palestina, como nunca vimos antes. Enfim, vemos os rostos de homens e meninos, mulheres e meninas, como jamais nos fora permitido.
No passado, argumenta Beydoun, os palestinos constituíam personagens deveras abstratas. “Em algum lugar do livro, digo que as pessoas nunca tiveram um palestino em boa estima antes do genocídio. Não conseguiam citar um”. As vozes palestinas, no entanto, romperam essa barreira: “Dei uma palestra recentemente. Uma menina branca de Sacramento hoje sabe quem é Bisan Owda. Um rapaz negro de 19 anos, de Los Angeles, conhece Motaz Azaiza. E não apenas sabem quem são, como seguem, amam e acompanham suas vidas”.
Beydoun descreve em detalhes como Gaza opera como uma “prisão a céu aberto”, ao expor o isolamento e a privação impostos pelas políticas israelenses. Desde o embargo a insumos essenciais à infraestrutura de vigilância, que monitora todas as facetas da vida, o sofrimento imposto a Gaza não é acidental, mas absolutamente deliberado.
Para mim, solidariedade — não sou exatamente um fã dessa palavra … Não diria que o que vemos hoje é solidariedade, mas sim a construção de uma verdadeira ponte entre nossa humanidade compartilhada, capaz de conectar as pessoas aos palestinos, não pela política — pois a política é fluida e volátil —, mas pelo reconhecimento de que são seres humanos, que merecem dignidade, oportunidades e uma chance de viver como qualquer outro.
A influência de Edward Said é também preeminente na escrita de Beydoun. Ao beber da tese de orientalismo de Said, Beydoun associa a vilificação dos palestinos a um quadro amplo de imperialismo e alteridade racial. Sua análise avança à África do Sul, ao traçar paralelos entre a Cidade do Cabo sob o apartheid e Gaza e enfatizar a natureza global da opressão colonial e da subsequente solidariedade necessária para desmantelá-la.
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Um dos aspectos mais aterradores do livro é como Israel justifica o assassinato de palestinos inocentes como “danos colaterais” de suas operações, cujo alvo supostamente é o grupo Hamas. Beydoun aponta que essa retórica demonstra de fato o intento genocida, ao normalizar o apagamento das vidas palestinas sob um verniz internacional.
Beydoun condena ainda a cumplicidade das corporações de redes sociais na desumanização de Gaza, ao destacar plataformas como Instagram, pertencente à Meta de Mark Zuckerberg, que silencia vozes palestinas mediante supressão algorítmica e tecnologias que buscam privar os palestinos de sua autonomia, dignidade e humanidade. O efeito, porém, segundo o autor, é um senso profundo de violação — quase como se os usuários sofressem uma espécie de estupro virtual. Este imaginário assombroso leva leitores a confrontar as dimensões dessa violação, ao agregar uma capada de maquinário moderno ao genocídio, com palestinos sistematicamente privados de direitos universais — incluindo a oportunidade de contar suas histórias.
A exploração de ciclos de cessar-fogo como ferramenta política, em vez de caminhos para paz e justiça, também é nota pelo autor. Beydoun expõe a retórica de “pausas humanitárias” como meio para prolongar o sofrimento e evitar responsabilização legal nas instituições globais. No sentido prático, Beydoun pede a seu leitor que transcenda a solidariedade performativa rumo a ações concretas.
O livro ganha vida através de imagens arrebatadoras do cartunista e satirista palestina Mohammad Sabaaneh. Suas ilustrações cruas e evocativas somam uma camada profundamente emocional à obra. Uma imagem se destaca: uma enorme árvore de oliveira, com as raízes emaranhadas no arame farpado, uma criança subindo em seus ramos — temas de resiliência e resistência.
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Eyes on Gaza força o leitor a confrontar o genocídio ainda em curso, não como um observador passivo, mas participante ativo de um sistema global que perpetua a violência. Ao mesclar análise histórica com narrativas íntimas, a obra traz à luz a vida de um dos povos mais desumanizados do mundo — os palestinos. Esta é uma obra capaz de mudar a forma como seus leitores veem o mundo — sem mais poderem lavar as mãos diante dos fatos e da história.