“O que sabemos sobre as pessoas que viveram guerras civis, violência, destruição, perda, desilusão e, necessariamente, um medo atroz? Como elas evoluem, o que muda nelas e endurece? No último quadrante da vida, naquele em que a morte se torna próxima e intensamente previsível, o coração não é mais do que uma bomba de uso prático. Sangue quente que jorra vigorosamente em nossos órgãos para escapar, só para escapar e nada mais.”
Correio Noturno, página 141
Algumas cartas perdidas espiam o íntimo de personagens perdidas em percalços, em vidas marcadas pela falta de saída, continuamente postas nos lugares de vítimas ou algozes. Correio Noturno, de Hoda Barakat expõe toda a complexidade humana de quem já se viu obrigado a cometer o inimaginável após experenciar a própria desumanidade.
O livro, traduzido por Safa Jubran, é a primeira publicação de Hoda Barakat no Brasil e foi o vencedor do Prêmio Internacional de Ficção Árabe (IPAF) de 2019. A escritora nascida em Beirute, Líbano, em 1952, se mudou para Paris em 1989, foi a segunda mulher a receber o prêmio e tem dez livros publicados.
O premiado Correio Noturno é um romance epistolar com personagens árabes que precisaram emigrar para o ocidente e em cartas fazem confissões íntimas de traumas e erros do passado que continuam a influenciar suas vidas.
No vídeo feito pelo IPAF de 2019 para divulgação da obra, Hoda Barakat diz que a carta é escrita em um momento de movimento, de uma trajetória a outra. “Eu retratei essas personagens através de uma imagem captada enquanto elas ainda estavam em trajeto. Isso não significa que a imagem seja real; também não significa que a trajetória seja real. Significa que elas estão atualmente nesse ato de movimento. Essas personagens não conseguem encontrar um caminho aberto à sua frente na direção que estão seguindo, então elas não param de vagar”.
O romance tem uma linguagem condensada, breve, mas extremamente potente, capaz de transmitir o funcionamento humano em toda a sua complexidade. O livro é composto por seis cartas principais que se conectam. Elas não chegam ao destinatário, mas são encontradas por alguém que se identifica, se comove e sente o ímpeto de escrever a própria carta, dando continuidade a essa corrente.
“Essa carta, que não chegou ao destinatário, parecia ser uma voz que não foi ouvida por ninguém desde sempre. Essa mulher perdeu a voz quando nasceu.”
Correio Noturno, páginas 114-115
A primeira carta mostra um homem traumatizado com o abandono materno e a extrema pobreza, incapaz de se ver como digno de afeto e de viver uma relação afetiva. Ele se torna um homem abusivo; projeta na amante a quem destina a carta, a mãe que o abandonou e então provoca conflitos esperando uma espécie de vingança ou confronto que nunca pode ter com a mãe. A carta é lida por uma desconhecida, uma mulher esperando reencontrar um romance antigo, que identifica no texto sua própria insegurança com seus relacionamentos.
LEIA: A luta de uma apátrida pelo direito de existir
“Enquanto eu lia a carta, sentia como se ouvisse sua voz, como se visse aquele homem solitário de pé, atrás da janela, os olhos fixos no vazio da noite, sozinho sem ela, a mulher que ele amava, ou não…”
Correio Noturno, página 42
Sua confissão é encontrada em um aeroporto por um homem em fuga, atormentado pelas atrocidades que sofreu e cometeu. Escreve à mãe a sua versão desse percurso que o tornou algoz, em busca de qualquer sentimento materno, seja de compaixão ou de punição. Ele conta sobre como foi preso sem acusações e torturado continuamente até que ele mesmo passasse a torturar. A carta não chega a mãe dele, chega a uma mulher que foi forçada a se casar quando criança pela mãe, sofreu abuso sexual, fugiu de seu país e recorreu a prostituição para ter algum tipo de liberdade e sustentar a filha distante. Por último, um filho desamparado e abandonado, que perdeu o namorado para o HIV e nunca teve a aceitação do pai.
Essas personagens sofreram a vida inteira, percebem a influência que as escolhas de seus pais tiveram em suas vidas, sentem raiva, mas ainda os amam independente do que tenham feito. Buscam por redenção, compaixão e qualquer tipo de afeto familiar.
“É como se eu conhecesse aquela mulher, como se a visse pedindo perdão a alguém sem obter esse perdão. Não só porque sua carta não chegará, não… mas em razão dessa necessidade que temos de que alguém nos ouça e depois resolva nos perdoar, independente do que tenhamos feito.”
Correio Noturno, página 114
A segunda parte do livro traz o eco dessas histórias, cartas escritas por pessoas citadas em cada uma das anteriores. Uma espécie de desfecho, que mostram o olhar e desconhecimento do outro. Permite que o leitor tenha um vislumbre da cena geral dessas histórias incompletas. No epílogo, carta de um carteiro em zona de guerra, o responsável por entregar tantos desfechos a tantas histórias.
O Professor Yasir Suleiman da Universidade de Cambridge, e presidente do conselho de administração do IPAF, descreveu o livro vencedor de 2019:
“Bem estruturado, o romance de Hoda Barakat ultrapassa a contagem de suas palavras, transformando a brevidade em uma virtude. Usando uma estrutura epistolar para lidar com o deslocamento e seus efeitos na experiência dos refugiados, o romance nos expõe à natureza precária da existência humana em um mundo à deriva. A busca dos protagonistas por um fio comum os une e os separa com igual crueldade. Um romance intenso e disciplinado, o Correio da Noite vai viver mais do que os mundos que o animaram. Está destinado a falar aos leitores em múltiplas línguas por causa da condição intensamente humana que evoca”.
A tradução de Safa Jubran mantém a qualidade do texto e sua linguagem condensada e potente. A publicação da oportunidade para que mais falantes da língua portuguesa conheçam a literatura árabe contemporânea e a obra de Hoda Barakat, uma mulher árabe que merece ser ouvida em todas as línguas.
Safa Jubran também é libanesa e migrou para o Brasil em 1982. Em 2019, foi vencedora do Prêmio Sheikh Hamad de Tradução e Entendimento Internacional pelo conjunto de seu trabalho. Esse ano, ela é uma das juradas da premiação de ficção árabe, o IPAF, que premiou o Correio Noturno e é uma das mais importantes premiações da literatura árabe.
LEIA: Che Guevara em Gaza: quando a Palestina torna-se uma causa global