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Reviravolta no caso Santiago Maldonado. Quem julga o juiz?

Santiago Maldonado [Foto de arquivo familiar]
Santiago Maldonado [Foto de arquivo familiar]

A cultura da impunidade do Estado é um legado das ditaduras da América Latina, treinadas a resolver seus problemas por meio de sequestros, prisões, tortura, execuções e desaparecimentos acobertados pelo regime. É um legado bastante presente no Estado brasileiro.  O Brasil ainda quer saber Quem mandou matar Marielle Franco,  a vereadora executada em 2018 no Rio de Janeiro.  Também lá se vão sete anos que o país se pergunta Onde está (o corpo de) Amarildo?, o pedreiro sequestrado e morto pela polícia pacificadora na Favela da Rocinha.

Mais do que o Brasil – que anistiou agentes do Estado brasileiro sem esclarecer seus crimes – a Argentina lutou para enfrentar seu passado, julgar e punir seus algozes e recuperar sua história. Até hoje, as Mães da Praça de Maio – hoje as avós da Praça  de Maio – buscam pelas crianças roubadas pela ditadura, filhas de jovens eliminados pelo regime.  Mas a cultura da impunidade e a cumplicidade dos agentes públicos em casos de  desaparecimentos ainda é uma sombra que aterroriza e revolta a sociedade.  Por isso, o  desaparecimento e morte  jamais explicados de Santiago Maldonado, em 2017, foi tão impactante para os argentinos.

Em 1º de agosto daquele ano, ativistas da comunidade mapuche Cushamen, localizada no estado de Chubut, que reivindicavam o direito a uma área de terras na Patagônia, legalizadas como propriedade do grupo italiano Benetton, estavam protestando  contra a prisão do lider de seu movimento, Facundo Jones Huala, quando a manifestação tornou-se alvo de violenta repressão policial, operação ordenada pela Gendarmeria (polícia nacional argentina).

Protestos por Santiago Maldonado em Buenos Aires [Pixabay]

O artesão Santiago Maldonado, que participava do protesto, desapareceu durante a ação, gerando comoção nacional e internacional e a pergunta que se repetia sem resposta: Onde está Maldonado? 

Passados 78 dias, o corpo de Santiago foi encontrado submerso no Rio Chubut e, autopsiado, teve a causa da morte determinada pelo juiz Gustavo Lleral como afogamento não criminoso. Mas a justiça não explicou: afogou-se quando? Segundo a perícia, a morte só pode ter ocorrido, no máximo, 73 dias antes da localização do corpo, jamais em 78. O intervalo entre o sumiço de Maldonado e o suposto afogamento restou um enigma.

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Maldonado não fazia parte da comunidade em que estava ao desaparecer, mas havia se aproximado dos indígenas na época dos protestos por  “sua consciência humanista de solidariedade” ,  conforme as palavras de  Facundo Jones Huala – o líder por cuja liberdade a comunidade se manifestava. Em uma entrevista a partir da prisão, ele falou sobre Santiago:

“Me falaram que ele se aproximou da gente da minha família, que compartilharam, e parece que ele começou a cozinhar. Era uma pessoa muito alegre e respeitosa. Ele colocou seu peito ao nosso lado, enfrentando as balas com pedras, foi o que aconteceu ”, lembrou.

Na fuga da repressão, segundo os relatos, os indígenas teriam atravessado o rio gelado, com temperatura de 5 graus negativos. Mas Maldonado não foi com eles, pelo frio e por não saber nadar. Ficou  na margem onde teria sido detido e levado pelos policiais.

No twitter, em 2017, Alberto Fernandez (que seria eleito presidente da Argentina em outubro de 2019), acrescenta o fato de que Maldonado não entraria no rio gelado usando 30 quilos de agasalhos.

No twitter, em 2017, Alberto Fernandez (que seria eleito presidente da Argentina em outubro de 2019), acrescenta o fato de que Maldonado não entraria no rio gelado usando 30 quilos de agasalhos.

A busca por ele, empurrada pela pergunta – Onde está Maldonado? – que se espalhou pelo mundo, mas principalmente em cada canto da Argentina, teve um aparente desfecho, com o resgate do corpo, sob a desconfiança pública.

“Ele apareceu em um lugar tão estranho, em três meses ele apareceu lá. Conhecemos o campo… A impunidade é tão grande. Isso é pior do que o terrorismo de Estado chileno. Eles vão tentar lavar as mãos …”- disse Facundo Huala.

Passando de juiz em juiz, a tese de um afogamento não criminoso foi ficando cada vez menos credível. O primeiro julgador, Guido Otranto, já havia sido afastado por parcialidade no caso, e então foi substituído pelo juiz Gustavo Lleral, que isentou a Gendarmeria de qualquer responsabilidade.

A família de Maldonado recorreu à Câmara Federal do Comodoro Rivadavia, pedindo  revisão de todas as decisões dos dois juízess, que não consideraram a hipótese de desaparecimento forçado.  O juiz de Cassação, Mariano Borinsky,  concordou em reabrir o caso, mas também rechaçou tratar de crime de desaparecimento forçado.  Na mesma Câmara Federal, o juiz Gustavo Hornos, teve igual posicionamento. A família quis propor peritos independentes, mas sem sucesso. “Tudo que pedimos, ele (Borinsky) rejeitou” – disse o irmão de Santiago.

Em abril, em meio a uma investigação de crimes de espionagem relacionados ao governo de Maurício Macri, uma perícia no telefone do ex-secretário do então presidente trouxe à tona uma relação comprometedora com o judiciário.

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Registrada no mesmo dia em que o juiz  Guido Otranto foi substituído por Gustavo Lleral, em 22 de setembro de 2017, a mensagem encontrada no telefone celular do ex-secretário de Macri e revelada pelo site El Uncover Web, dizia:

“Gustavo Lleral. Nós mesmos o nomeamos. Está bem, eu ri. Já mantínhamos contatos. Mahíques irá vê-lo na segunda-feira.”

Juan Mahíques, procurador-geral da cidade, é apontado pela mídia argentina como um dos operadores de Macri no judiciário.

Por lei, na Argentina, um juiz não pode manter contato com uma das partes envolvidas durante os processos que julga.  E no caso, o governo Macri era a parte acusada, através de sua polícia nacional, à qual parecia proteger a todo custo.

Já Mariano Borinsky, encarregado de revisar as decisões de Otranto e Lleral, e avesso aos apelos da família de Maldonado, é o juiz cujo nome apareceu. este mês. no escândalo revelado pela mídia, por meio da  Lei de Acesso à Informação, de visitas não oficiais à Quinta de Olivos durante julgamentos e decisões judiciais. Ele manteve mais de quinze encontros com Maurício Macri, enquanto a Câmara da qual era parte julgava ações de interesse do macrismo contra adversários – como as várias ações movidas contra a ex-presidenta Cristina Kirchner.  O juiz Gustavo Hornos, aquele outro integrante da Câmara de Cassação que também rejeitou a inclusão de desaparecimento forçado no processo de Maldonado, era outro frequentador da Quinta de Olivos,

Indícios de problemas e práticas de acobertamento mancham a investigação desse caso desde o início.  À época, o  especialista e engenheiro em eletrônica e telecomunicações Ariel Garbarz denunciou que a porta de entrada de uma base de rádio da Movistar havia sido violada e se ofereceu para colaborar com a perícia. A antena dessa estação, ele explicou, é a que teria registrado a ligação que um amigo de Santiago, Ariel Garzi, fez para o celular do jovem desaparecido no dia 2 de agosto. Consta que essa chamada foi atendida por uma pessoa desconhecida que ficou em silêncio por 22 segundos e depois desligou. E ao tentar ligar novamente, não houve resposta.

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“Naquela chamada, ficaram registrados na antena os celulares das pessoas que estavam por perto, que certamente são os celulares dos autores” do sequestro e assassinato de Maldonado, argumentou Garbarz ao C5N. “Se ele (Maldonado)  simplesmente tivesse se afogado em 1º de agosto, o celular teria sido danificado” e ele não poderia ter recebido a ligação de Garzi em 2 de agosto.

As revelações de abril obrigam mudar o rumo do caso, uma vez que os próprios juízes estão na berlinda.  A família Maldonado quer a anulação e reinício de todo processo, com outros juízes e a formação de um grupo de peritos independentes.  A reviravolta aumenta a pressão sobre o governo de Alberto Fernandez, que havia prometido atuar pelo esclarecimento do crime e que agora é cobrado, não só pela família, mas pela Argentina.

Sem a responsabilização do Estado, o caso Maldonado é um crime fadado a se repetir. E se repete. No dia 30 de abril de 2020, já em plena pandemia,  Facundo Castro, de 23 anos, saiu da cidade de Pedro Luro, para visitar a namorada na cidade Bahía Blanca,  na província de Buenos Aires, e foi detido por um comando da Gendarmeria. A pergunta que passou a ser feita por toda parte, “onde está Facundo?” foi respondida no dia 15 de agosto, quando seu corpo foi encontrado. Mas, como no caso de Santiago, o resto da história ainda espera para ser contado.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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