O discurso político de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina sediada na Cisjordânia ocupada, é análogo a um rei inapto e perdido em seu palácio há muito, muito tempo. O monarca fala de prosperidade e paz e enuncia obstinadamente incontáveis conquistas e riquezas ao passo que seu povo morre de fome do lado de fora dos portões, implorando por seus cuidados ou atenção.
Entretanto, Abbas não é qualquer rei. É “presidente” apenas de nome, designado “líder” meramente porque Israel e o establishment político internacional, sob liderança de Washington, insistiu em reconhecê-lo como tal. Não apenas seu mandato político expirou em 2009, como era bastante restrito mesmo antes. Em nenhum momento de sua longeva carreira, Abbas de fato representou todos os palestinos. Agora, aos 85 anos, há chances de jamais fazê-lo.
Muitos antes de Abbas tornar-se o “candidato” palestino favorecido pelos Estados Unidos e Israel para enfim “governar” os palestinos ocupados e oprimidos, em 2005, dois discursos políticos distintos se desenvolviam na região e, com eles, duas culturas também distintas.
Havia a “cultura de Oslo”, sustentada por jargões, platitudes sobre paz e negociações e, sobretudo, por bilhões e bilhões de dólares provenientes de países doadores. Tais recursos jamais foram efetivamente destinados a conquistar a tão cobiçada paz ou justiça ou independência palestina. Reservavam-se, ao contrário, à sustentação de um lúgubre status quo, através do qual a ocupação militar israelense foi normalizada por meio da “coordenação de segurança” entre o exército sionista e a Autoridade Palestina.
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Pouco a pouco, essa cultura foi designada pela maioria dos palestinos como maculada por corrupção e deslealdade, embora celebrada no Ocidente como “moderada”, particularmente quando comparada com sua vertente oposta — rotulada de “radical” ou, ainda pior, “terrorista”.
A outra cultura é criminalizada, portanto, há três décadas. Entretanto, graças à recente revolta popular na Palestina e à resistência na Faixa de Gaza, enfim prevalece. A demonstração de força da resistência palestina em Gaza sitiada, a partir de 10 de maio, — sobretudo no contexto de um levante popular que enfim uniu a juventude em toda Palestina histórica, não somente Cisjordânia, Gaza e Jerusalém — inspira afinal uma nova linguagem. A nova conjuntura foi então adotada por um punhado de intelectuais “radicais” e figuras políticas e acadêmicas há muito filiadas à Autoridade Palestina.
Em entrevista ao jornal britânico The Independent, pouco após o fim da recente ofensiva de Israel contra Gaza, por exemplo, a ex-ministra da Autoridade Palestina Hanan Ashrawi falou de mudanças em curso no âmbito sociopolítico da região. “O Hamas evoluiu e ganhou apoio entre os jovens, mesmo cristãos”, explicou Ashrawi. “O Hamas tem todo o direito de ser representado em um sistema plural”.
Entretanto, não se trata apenas do movimento Hamas. De fato, a nova retórica remete à resistência palestina como um todo, seja islâmica, nacional ou socialista.
Em certa ocasião, Abbas referiu-se à resistência em Gaza como “frívola”. Hoje, pouquíssimos palestinos na Cisjordânia, e mesmo em Ramallah, concordariam com sua sentença.
Em 25 de maio, o Secretário de Estado dos Estados Unidos Antony Blinken correu a Israel e aos territórios ocupados em uma tentativa desesperada de ressuscitar a velha linguagem, que hoje os palestinos contestam abertamente. Dentro do luxuoso gabinete de Abbas, o diplomata americano falou de dinheiro, negociações e “liberdade de expressão”, embora sem muita destreza. O presidente palestino agradeceu Blinken, demandou de modo embaraçoso o retorno ao “status quo” em Jerusalém ocupada, renunciou mais outra vez a métodos de “violência e terrorismo” e enfim proclamou um apelo por uma “resistência popular pacífica”.
Todavia, nas ruas de Ramallah, há poucas centenas de metros do teatro encenado por Abbas e Blinken, milhares de palestinos enfrentavam a dura repressão da polícia da Autoridade Palestina, ao entoar palavras de ordem como “América é a cabeça da cobra”, “A coordenação de segurança é uma vergonha” e “Os Acordos de Oslo são passado”.
Entre os manifestantes, havia muçulmanos e cristãos, homens e mulheres, jovens e idosos, representantes de todas as facções palestinas — incluindo o partido hegemônico da Autoridade Palestina, o próprio Fatah, liderado por Abbas. Seus emblemas eram precisos, é claro, mas o que podemos assimilar desse episódio é que os palestinos na Cisjordânia finalmente superam obstáculos e medos há muito impostos, por uma divisão faccionária sufocante e pela brutalidade dos capangas de Abbas. Hoje, os palestinos em toda a região desafiam publicamente — inclusive, prontos para destronar — a cultura de Oslo.
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A visita de Blinken à Palestina não foi motivada por sua preocupação com as dores dos palestinos sob cerco ou ocupação, certamente tampouco pela falta de “liberdade de expressão”. Caso fosse, os Estados Unidos teriam prontamente interrompido sua ajuda militar de US$3.8 bilhões anuais a Israel ou ao menos elaborado algumas condições. Contudo, Blinken nada tinha a oferecer — ideias, planos, estratégias, sequer retórica, absolutamente nada. Trata-se, vale lembrarmos, do chefe de política externa do governo do Presidente Joe Biden. Tudo que pôde prometer foi mais dinheiro a Abbas, como se os palestinos estivessem morrendo em nome de um vago socorro norte-americano.
Como a política externa de Biden, Abbas está falido. Tropeça enquanto fala e enfatiza encarecidamente sua gratidão pela ajuda financeira dos Estados Unidos, um dinheiro que enriqueceu somente a si próprio, sua família e uma classe corrupta de palestinos que não merecem sua fortuna.
O último massacre israelense em Gaza — centenas de mortos e milhares de feridos, a grande maioria civis, e um enorme devastação —, além da violência sistemática da ocupação na Cisjordânia e além, representa um divisor de águas na história palestina; não por causa da tragédia orquestrada por Israel, mais outra vez, mas devido à resistência do povo palestino em sua resposta coletiva. As consequências dessa nova realidade devem mudar o paradigma político na Palestina ocupada, nos próximos anos.
Muitos argumentam frequente e corretamente que os Acordos de Oslo como doutrina política estão mortos há muito tempo. Não obstante, a cultura de Oslo — marcada por uma linguagem falaciosa, faccionária, classista e por um verdadeiro caos político —, que persistiu por anos e anos, demonstra agora sua flagrante decadência. Nem Washington ou Tel Aviv, muito menos Mahmoud Abbas, serão capazes de ressuscitar a filosofia da miséria que Oslo impôs ao povo palestino. Apenas os palestinos podem liderar essa transformação, em direção a um futuro melhor: união nacional, clareza política e, no final das contas, liberdade.
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