“Os velhos morrerão, os jovens esquecerão.” A sentença proferida pelo arquiteto da limpeza étnica na Palestina e primeiro-ministro do recém-criado “Estado de Israel” em 1948, David Ben-Gurion, não se cumpriu. Ele não poderia ter se equivocado mais: os “velhos” que já morreram deixaram um legado precioso a seus filhos e netos: a identidade e memória coletiva de uma terra que clama por sua libertação. Essa identidade, sob constante ameaça de apagamento, segue a ser transmitida de geração para geração.
Como tudo o que diz respeito à vida dos palestinos, hoje afirmar-se palestino ou palestina é um ato de resistência, em meio à contínua Nakba (catástrofe com a formação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada). Mas engana-se quem pensa que essa identidade foi forjada a partir da emergência do nacionalismo palestino no começo dos anos 1920, após o mandato britânico emitir em 2 de novembro de 1917 a Declaração Balfour, declarando-se favorável à constituição de um lar nacional judeu na Palestina – e avalizando, portanto, a colonização sionista que se iniciara ainda em fins do século XIX. Traz herança cultural de tempos imemoriais. É o que revelam historiadores palestinos como Nur Masalha.
Em seu livro “Palestina: quatro mil anos de história”, ele ensina que o nome Palestina remonta há pelo menos 3.200 anos. E explica que já havia a noção entre sua população originária de unidade geopolítica em torno do território nos séculos IV a VII, durante o Império Bizantino. Ao investigar trabalhos de escritores árabes medievais nos séculos X a XVIII, ele observa que termos como Ahlu Falastin e Ard Falastin, pessoas/povo e terra da Palestina respectivamente, já estavam presentes em suas obras, denotando o reconhecimento dessa identidade, que ganha novo significado em meio ao mandato britânico e projeto colonial sionista, mas tem origem pré-moderna.
Essa comprovação é absolutamente fundamental para enterrar de vez o argumento sionista de transferência populacional de um local árabe para outro como algo aceitável à época. No eufemismo para a limpeza étnica planejada à colonização por povoamento, essa foi a justificativa: de que eram todos árabes, e os palestinos sequer se identificavam como tais. Assim, não havia problema moral em “transferi-los” – compulsoriamente, ou seja expulsá-los – para que dessem lugar a imigrantes europeus, de modo a se constituir um estado de maioria judaica. A despeito do absurdo desse argumento, como se fosse natural deslocar toda uma população indígena de sua terra natal para outra área, Masalha e outros historiadores palestinos desvelam que o sentimento de pertencer à Palestina não era absolutamente algo novo, muito pelo contrário. Por outro lado, historiadores israelenses como Shlomo Sand revelam que não havia qualquer identificação com aquela terra por aqueles imigrantes europeus transportados para a Palestina no projeto colonial sionista.
Resistir é existir
A identidade palestina está refletida na Carta de Princípios de 1968 da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), quando escreve reiteradamente “nós, o povo árabe-palestino” para enunciar a luta pela libertação da Palestina, do rio ao mar. E afirma quem são os palestinos: toda criança que nasceu de pai palestino antes ou depois da Nakba, dentro ou fora da sua terra de origem. O que não foi nenhuma invenção, mas uma constatação, tendo em vista que é assim que se transfere a nacionalidade no mundo árabe, de pai para filho.
A carta da OLP responde porque nos afirmarmos palestinos apesar de termos nascido no Brasil, uma questão que é colocada com frequência. Essa consciência, que se combina com a de que nossa identidade é resistência, é a razão.
A sociedade palestina encontra-se fraturada há mais de 73 anos e dos mais de 13 milhões que a integram, metade está fora de suas terras: 5 milhões em campos de refugiados nos países árabes e milhares na diáspora, à espera do retorno. Assim, hoje tem-se o palestino da Síria, o palestino do Líbano, o palestino-americano, o palestino-chileno, o palestino-brasileiro e muitos outros. Assim como o palestino sob ocupação desde 1967 – de Gaza, da Cisjordânia, de Jerusalém –, o palestino de 48 (que é denominado, também como forma de apagar sua identidade, cidadão árabe-israelense, submetido a cerca de 60 leis racistas). As questões de identidade, como afirma o historiador Rashid Khalidi em sua obra “Identidade palestina – construção da consciência nacional”, estão presentes de uma forma ou de outra na vida de todos.
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Enquanto afirmar-se palestino tendo nascido no Brasil pode ser visto aqui com estranheza por muitos, Israel não deixa qualquer dúvida. Aqueles cujas origens são palestinas, ao pisarem na fronteira controlada pelos sionistas para ingressar em suas terras ocupadas, não raro recebem tratamento muito distinto do que seria reservado a um brasileiro comum. Seu passaporte e documento brasileiros não o isentam de enfrentar o apartheid desde a fronteira, ainda mais quando recusam a chantagem sionista de silenciar ante os crimes israelenses para poder abraçar seus familiares.
Vivenciam humilhação, interrogatórios, revistas física e de bagagem e pressão psicológica, além de muitas vezes horas intermináveis de espera. O que pode culminar com o carimbo de entrada negada a terras que sempre foram suas. Nome, sobrenome e filiação são determinantes nesse sentido. As perguntas são reveladoras do racismo com que serão tratados: “Qual o nome do seu pai?”. “Onde ele nasceu?”
Nossa resposta ao mundo é: Palestina. Somos palestinos. E vamos continuar a transmitir nossa identidade e memória coletiva de geração para geração. Nossa resistência é existência. Os jovens não esquecerão. Assim, proclamamos o fracasso da tentativa de nos apagarem do mapa e a certeza de que um dia aquela terra será livre, do rio ao mar.
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