A postura dos Estados Unidos – e da maioria dos governos ocidentais – sobre o genocídio armênio de 1915 foi o último de uma série de incidentes que prejudicaram o relacionamento com a Turquia. No decorrer das últimas décadas, apesar de ser um aliado sincero e indispensável – como disseram muitos líderes aliados – a Turquia sofreu diversos reveses no campo ocidental, que abalaram sua parceria externa e impuseram eventuais riscos a sua segurança nacional. A situação ocasionalmente levou ao questionamento lógico entre políticos turcos e especialistas em relações internacionais: O que resta à Turquia na arena ocidental?
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a Turquia não hesitou em coligar-se ao bloco ocidental, representado sobretudo por Estados Unidos e seus aliados na Europa. Naquele momento, o estado turco sentia-se ameaçado pela União Soviética e buscou manter o controle sobre seus estreitos territoriais, que conectam o Mar Negro ao Mar Mediterrâneo, uma rota fundamental estratégica de exportações russas a todo o planeta.
Desde então, a Turquia definiu a si própria pela aliança com os regimes ocidentais e permaneceu a seu lado perante o bloco oriental soviético. O estado turco contribuiu bastante com seus parceiros, a começar pela Guerra da Coreia entre 1950 e 1953, ao filiar-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1952, e permitir a instalação de bases de inteligência e segurança em seus territórios durante a Guerra Fria.
Apesar de diversas contribuições no período posterior à Segunda Guerra Mundial, reconhecidos por governantes europeus e estadunidenses, a Turquia jamais sentiu-se devidamente reconhecida por colaborar com a vitória ocidental. Mesmo ao longo da Guerra Fria e nos anos posteriores, a relação entre Turquia e Ocidente sofreu uma série de infortúnios.
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A questão do Chipre é um exemplo de postura ocidental contra as reivindicações turcas. Estados Unidos e Europa aliaram-se à narrativa grega sobre a pauta e estabeleceram sanções a Ancara, incluindo um embargo militar após sua intervenção na ilha mediterrânea em 1974, conforme o pretexto de proteger a comunidade turco-cipriota de grupos terroristas de raízes gregas que buscavam expulsar seus conterrâneos do território. Não obstante, a Turquia permaneceu um aliado sincero do campo ocidental, compromissado sob a parceria histórica.
Em outro sinal de indiferença a riscos enfrentados pela Turquia, os Estados Unidos negaram ao país a importação de itens de defesa, considerados de necessidade urgente para combater o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, designado “terrorista” por Ancara e por aliados ocidentais. O grupo nacionalista curdo é acusado pelo regime turco de assassinar dezenas de milhares de pessoas no decorrer de quatro décadas.
Em 1996, a Casa Branca obstruiu a venda de helicópteros militares Super Cobra à Turquia; em 2012, rejeitou um pedido para adquirir drones Predator. Além disso, os Estados Unidos negaram prover à Turquia um sistema de defesa aérea após a compra de equipamentos de última geração fabricados na Rússia. Eventualmente, Washington removeu seu aliado regional do programa de desenvolvimento conjunto de jatos combatentes F-35.
Como se não bastasse, os Estados Unidos, com apoio da França, negligenciaram apreensões de segurança da Turquia no norte da Síria, quando o ex-presidente americano Donald Trump ameaçou “esmagar” a economia turca caso prosseguissem suas operações militares na região.
Dois grupos considerados terroristas pela Turquia – as Unidades de Proteção Popular (YPG) e o movimento supostamente liderado por Fethullah Güllen – jamais foram proscritos por Washington. O Pentágono concedeu ao YPG, braço sírio do PKK, centenas de milhares de dólares em armas, apesar de alertas turcos contra a assistência. Os Estados Unidos conferiram exílio a Güllen, acusado de ser mandante da tentativa de golpe de estado de 2016.
O caso armênio: A última gota
Sucessivos presidentes americanos demonstraram cautela sobre o uso da expressão “genocídio” para descrever o que sucedeu à comunidade armênia na província da Anatólia sob o Império Otomano em 1915, em meio aos horrores da Primeira Guerra Mundial. Naquele momento, residentes armênios, muçulmanos e curdos em solo otomano vivenciaram as tragédias do conflito e centenas de milhares de pessoas foram executadas entre tais grupos.
As comunidades armênias na diáspora aparentemente insistiram em negar a tragédia a outras comunidades, ao concentraram suas reivindicações em sua própria narrativa. Governos americanos, sob a ideia de preservar laços com a Turquia, resistiram aos esforços armênios para reconhecer o que aconteceu à comunidade como “genocídio”.
Em outubro de 2019, o Capitólio aprovou uma resolução sobre o “genocídio armênio”, ao tornar o reconhecimento da tragédia como parte de sua política de estado. Em 24 de abril de 2021, o presidente Joe Biden, em um evento para recordar a catástrofe armênia, referiu-se publicamente ao episódio como “genocídio”; recentemente, na mesma data, o líder democrata emitiu um novo comunicado para marcar o 107° aniversário do “genocídio armênio”.
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A declaração de Biden foi duramente repudiada pelo presidente turco Recep Tayyip Erdogan, ao acusar seu homólogo americano de difundir mentiras. “O senhor Biden deve aprender primeiro a história do povo armênio. Não podemos perdoar tais esforços de desafiar a Turquia, apesar de tamanha falta de conhecimento”, afirmou Erdogan em discurso televisionado.
De maneira geral, a adoção americana da narrativa armênia, em detrimento dos apelos turcos para reavaliar os fatos históricos, pode ser considerada a última gota no relacionamento estratégico entre os países. A Turquia não pode mais descrever seus laços com Washington como “parceria estratégica”. Nessa conjuntura, o governo turco aparentemente busca fortalecer seu relacionamento com outras potências globais, como China e Rússia, com base em uma política de diversificação e multilateralismo.
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