É difícil recordar um momento de nossas vidas e das gerações anteriores no qual a peregrinação islâmica à cidade de Meca – ou Hajj – mostrou-se tão caótica e instável quanto neste ano. No decorrer do último ano, décadas de status quo na organização do turismo religioso à Caaba foram revogadas pelo governo da Arábia Saudita para estabelecer um portal online designado “Motawif”, incumbido de processar, registrar e selecionar peregrinos do Ocidente – especificamente, oriundos dos Estados Unidos, da Austrália e de países da Europa.
Desde então, o que ocorreu foi uma avalanche de problemas referentes ao portal Motawif. Após o sistema de loteria selecionar os peregrinos, o processo de emissão de vistos e autorizações, bilhetes de viagem e reservas de hospedagem falharam um após o outro. Muitos daqueles que conseguiram apresentar os documentos requisitados pelo regime saudita se viram presos no aeroporto na data marcada para a partida, pois o moderno sistema fora absolutamente incapaz de emitir um bilhete de viagem a tempo.
Outros conseguiram chegar ao país e à cidade islâmica de Meca – após sucessivos atrasos nos ônibus e outros meios de transporte – para então descobrirem que não havia reservas nos hotéis em seus nomes. Quem finalmente conseguiu um quarto, descobriu que nada tinha a ver com a hospedagem que reservaram previamente. Relatos apontam até mesmo que algumas mulheres foram designadas a dividir seus quartos com homens desconhecidos.
Como se não bastasse, muitos peregrinos reclamaram da falta de atendimento da equipe online do sistema Motawif. Ao conseguir contactar o portal, alguns atendentes diziam que era melhor cancelar a peregrinação e deixar para o ano seguinte. O conselho prescindia, evidentemente, de qualquer garantia de reembolso do custo da viagem, estimado em milhares de dólares. Em suma, havia erros crassos e empecilhos em cada etapa do processo.
O caos foi tão notório que até mesmo autoridades sauditas eventualmente reconheceram o problema. O Ministério do Hajj assumiu então o papel de resguardar o bem-estar dos peregrinos ocidentais – no meio da peregrinação anual – com intuito de salvar a temporada e a imagem da monarquia.
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Fora especulações sobre os objetivos da monarquia em submeter a peregrinação islâmica ao portal Motawif ou seus supostos vínculos com o governo ultranacionalista e entes islamofóbicos na Índia, fica uma dura lição aos governos autoritários no Oriente Médio e no restante do mundo: a centralização simplesmente não funciona. Estados, exércitos, empreendimentos privados e aparatos burocráticos há muito insistem em meios centralizados de poder. No entanto, costumam aprender – a duras penas – que os resultados jamais coincidem com promessas e previsões, quando não são um desastre completo.
Sistemas centralizados frequentemente potencializam elementos controversos sob um único indivíduo, grupo individual ou – no caso do Motawif – um portal online sob autoridade da monarquia. Pela lógica tradicional, concentrado em um objetivo unívoco, o projeto ou processo estaria fadado ao sucesso. Ao contrário, configura a formação de uma corrente de comando deveras rígida e inchada, que cria demora na tomada de decisões, além de incorrer em maiores erros de julgamento por parte de lideranças que rejeitam o diálogo ou que pouco conhecem dos requerimentos ou fatores determinantes do processo, incluindo sua administração em campo.
Este mesmo fenômeno está no âmago de muitas derrotas militares na história recente. Os analistas militares Kenneth M. Pollack e Norvell B. De Atkine – a despeito de eventuais inclinações políticas – argumentam que a centralização excessiva foi um fator fundamental para as derrotas árabes contra Israel nos anos de 1960 e 1970. Para reagir ao problema, tornou-se popular no discurso ocidental promover sistemas de responsabilidade e descentralizar consideravelmente o processo de comando.
Jocko Willink, ex-fuzileiro naval dos Estados Unidos, escreveu em seu livro – “Extreme Ownership” – que, conforme sua experiência, seus subordinados não telefonavam a sua base para questionar o que fazer. “Ao contrário, me informavam sobre o que fariam; eu confiava neles para que fizessem ajustes e adaptassem o plano sob circunstâncias imprevistas, desde que permanecessem dentro das diretrizes concedidas e dos protocolos operacionais. Eu confiava neles para que liderassem a si próprios … Isso tornou meu trabalho muito mais fácil e me permitiu focar no panorama geral”.
No caso do Motawif, sua célere decadência começou quando Riad anunciou remeter o processo de peregrinação ocidental a um novo modelo com apenas um mês de antecedência sobre o início das viagens. Tratar dos milhões e milhões de requerimentos, organizar a documentação e registrar as dezenas de milhares de pessoas dentro de poucas semanas seria uma tremenda responsabilidade a qualquer sistema – em particular, um mecanismo que sequer foi devidamente testado.
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O sistema anterior permitia a iniciativa individual ou participação de agências estrangeiras de viagem. Independente de seus problemas, em suas décadas de uso, este mecanimso jamais demonstrou tamanho caos administrativo. A razão para tanto – é claro – é que o processo descentralizado removia o fardo do governo saudita ou de um sistema unívoco como o portal Motawif.
Não é surpresa alguma que a enorme mudança é parte dos esforços da monarquia para “modernizar” seus processos de gestão pública, turismo e identificação de estrangeiros no país, conforme as metas estabelecidas pelo programa Visão 2030. A inclusão da peregrinação islâmica anual neste experimento doméstico – embora sirva de lição a todo o planeta – foi notoriamente malsucedida e catastrófica.
Para evitar a reincidência dos problemas vivenciados pela temporada de 2022, parece que o governo saudita precisa retornar ao sistema prévio das agências de viagens ou reformar drasticamente o portal Motawif ou qualquer substituto online. A monarquia fatalmente degustou os problemas da centralização; agora, tem a oportunidade de persistir no erro ou assumir a experiência como uma lição estratégica para os anos seguintes.
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