A poeira enfim baixou no Brasil e, mesmo que o atual presidente Jair Bolsonaro e seus adeptos mais radicais não reconheçam, Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições. Embora o resultado fora muito mais apertado do que o desejado – 50.9% contra 49.1% dos votos –, Lula derrotou o incumbente por mais de dois milhões de eleitores, apesar dos esforços de forças pró-Bolsonaro de suprimir o voto de populações inteiras e da gastança multibilionária do presidente derrotado para comprar apoio.
A semana foi marcada por bloqueios nas rodovias e manifestações inconstitucionais, nos quais extremistas insistiram em exigir um golpe militar. Seus números, entretanto, minguaram pouco a pouco. Ainda assim, são perturbadoras as imagens de milhares de brasileiros que clamam por ditadura e mesmo um grupo um tanto numeroso que aparentemente fez uma saudação nazista perante uma versão do hino nacional.
Quase tão perturbador quanto é o apoio tácito ou mesmo explícito de policiais a tais protestos antidemocráticos. Frustrados com a relutância das forças oficiais para agir, membros do público – incluindo torcidas organizadas de futebol – decidiram eles próprios limpar as vias. As chances de um golpe de estado são menores dia após dia. Aliados poderosos de Bolsonaro já aceitaram o resultado das urnas e buscam apaziguar os ânimos junto a um processo ordeiro de transição.
Mas o que significa a vitória de Lula para o resto do mundo? Após ser anunciado o resultado, na noite de domingo, 30 de outubro, líderes de todos os cantos do mundo – entre os quais, China, Rússia e Estados Unidos – correram para parabenizar o presidente eleito. Sob Bolsonaro, o país vacilou de agente internacional respeitado, célebre por seu compromisso ao multilateralismo, a estado-pária sequer convidado às mais importantes cúpulas de política externa. O Brasil jamais viveu tamanho isolamento em sua história moderna.
Bolsonaro e seus asseclas, de certo modo, desfrutaram do status de pária, ao romper com todas as normas da diplomacia, por exemplo, ao se envolver de maneira abertamente partidária em assuntos domésticos dos Estados Unidos, como a tentativa de golpe de Donald Trump, após ele próprio ser derrotado nas eleições de 2020. As injúrias de Bolsonaro a líderes globais ocorreram às claras, como sua contenda com o Presidente da França Emmanuel Macron por um pacote de ajuda financeira referente à Amazônia.
Política externa truculenta
Talvez, nenhum outro lugar vivenciou a truculência e a agressividade da política externa de Jair Bolsonaro como o Oriente Médio. O Brasil desfruta de fortes laços culturais e históricos com a região, ao abrigar uma imensa diáspora árabe de mais de 11 milhões de pessoas. O Líbano, em particular, representa uma parte fundamental da identidade nacional brasileira, desde a música à gastronomia. A comunidade libanesa no Brasil é calculada hoje entre sete e dez milhões de pessoas – mais do que a população no próprio país. O ex-presidente Michel Temer tem origens libanesas, assim como outros políticos de destaque.
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Desde o início da guerra civil na Síria, uma nova onda de imigrantes chegou ao Brasil; comércios e restaurantes sírios se tornaram parte integral da paisagem urbana de São Paulo. Em torno de 70 mil refugiados palestinos também vivem no Brasil – a bandeira palestina é elemento comum em manifestações de esquerda.
Em 2010, durante o segundo mandato do presidente Lula, o Brasil reconheceu a independência do Estado palestino. Lula se projeto como um aliado valoroso da causa palestina, ao se tornar o primeiro chefe de estado brasileiro a visitar a Palestina ocupada. Sua sucessora, Dilma Rousseff, deu sequência a esta abordagem de política externa, ao condenar oficialmente os bombardeios de Israel contra Gaza em 2014 e rejeitar que o ativista colonial Dani Dayan assumisse o cargo de embaixador de Israel em solo brasileiro.
Um dos poucos países onde Bolsonaro de fato encontrou apoio internacional foi precisamente Israel. Nos anos recentes, a extrema-direita brasileira – em grande parte, devido à ascensão do fundamentalismo evangélico – abraçou o sionismo como símbolo e causa. A bandeira israelense assumiu protagonismo na estética bolsonarista. A primeira-dama de Bolsonaro, Michelle, foi às urnas no domingo com uma camisa estampada com a bandeira de Israel. O próprio presidente já admitiu: “Meu coração é verde, amarelo, azul e branco”, em alusão às cores nacionais de ambos os países.
Uma mudança bem-vinda
Como bem observou a jornalista Eman Abusidu ao Monitor do Oriente Médio (MEMO), o Brasil se tornou o “novo melhor amigo” de Israel nos últimos anos. Bolsonaro prometeu mais de uma vez transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv a Jerusalém ocupada, muito embora sem jamais chegar às vias de fato.
Após o triunfo eleitoral de Bolsonaro em 2018, uma fonte do Itamaraty confirmou ao periódico israelense Haaretz que “o Brasil será agora azul e branco”. Pouco após tomar posse, Bolsonaro realizou sua primeira visita oficial a Israel e converteu em prática seu compromisso de se tornar um dos poucos estados remanescentes a defender com unhas e dentes o estado ocupante nas Nações Unidas.
O retorno de Lula ao poder representa também o retorno do Brasil ao mundo. Lula deixou seu último mandato como um dos mais populares líderes eleitos da história, consagrado pelo então presidente dos Estados Unidos Barack Obama como “o cara”. Durante toda sua campanha, Lula fez referência a seu papel em gerenciar a questão nuclear iraniana e em expandir a colaboração Brasil-África – muito embora a política externa pouco se converta em votos.
Lula sugeriu resgatar o compromisso brasileiro sobre questões do meio-ambiente e de direitos humanos – tanto em âmbito doméstico quanto internacional. Após os numerosos ataques de Bolsonaro à comunidade LGBTQ+, assim como aos negros e indígenas no Brasil, além de sua sabotagem sistemática de qualquer tentativa de proteger a Amazônia, a renovada postura do presidente eleito é mais do que bem-vinda.
Lula buscará reaver o assento brasileiro como mediador em assuntos internacionais, ao reiterar seu compromisso com o multilateralismo e reparar os danos deixados por Bolsonaro. Contudo, o verdadeiro desafio será governar em casa. Enquanto isso, no entanto, o mundo pode festejar que o Brasil tenha escapado de seu autoimposto isolamento, ao rejeitar a extrema-direita pela via democrática.
O Brasil é também favorito para a Copa do Mundo FIFA de 2022, realizada no Catar, entre 20 de novembro e 18 de dezembro. O hexacampeonato seria um ótimo começo para a presidência de Lula.
Este artigo foi publicado originalmente pela rede Middle East Eye
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