Terminada a mais impactante competição desportiva profissional no planeta, além da histórica vitória da Argentina, temos evidências de um movimento antagônico. Por um lado, o esporte mais popular do planeta realmente alcança os cinco continentes, ainda que o alto rendimento fique concentrado nas seleções europeias e sul-americanas. Por outro, o mercado da bola da Europa, organizado pela contestada União das Associações Europeias de Futebol (UEFA), concentra um número absurdo de jogadores de alto nível, revelando ser o destino de um fluxo de capital cada vez mais intenso.
Simultaneamente, vemos outro fenômeno raro. A Europa no final do século XX e primeiro quarto do XXI observa o mesmo movimento de popularização do futebol sul-americano na década de 1920. No auge do sindicalismo classista e combativo o esporte “bretão”, praticado por filhos das elites, tornou-se paixão popular e passou a encarnar os jogos corporais das massas trabalhadoras. Nos primórdios, as seleções nacionais eram compostas por um número cada vez maior de pessoas com origens no mundo do trabalho, o que fez do profissionalismo uma necessidade. Na Europa dos últimos trinta anos, as melhores equipes “nacionais”, como os ciclos da França, Holanda e Inglaterra, precisam necessariamente de filhos e netos da presença colonial e pós-colonial destas potências ocidentais.
Comecemos pelo primeiro tema.
A concentração de capital no futebol mundializado
Os números são absurdos. Três clubes europeus – ou entidades esportivas que não são franquias, mas operam na forma de Sociedade Anônima de Futebol – cederam mais de quinze atletas para as seleções classificadas para a Copa. A lista completa dos dez que mais cederam, com exceção de equipes cataris e sauditas, é o espelho do capitalismo moderno. Vejamos:
- Bayern de Munique (ALE) – 17 atletas
- Manchester City (ING) – 16 atletas
- Barcelona (ESP) – 16 atletas
- Al-Sadd (CAT) – 15 atletas
- Manchester United (ING) – 14 atletas
- Real Madrid (ESP) – 13 atletas
- Chelsea (ING) – 12 atletas
- Al-Hilal (ARA) – 12 atletas
- Tottenham (ING) – 11 atletas
- Paris Saint-Germain (FRA) – 11 atletas.
Obviamente, não se trata de jogadores nacionais, sequer do mesmo continente. As torcidas europeias passam a apoiar uma verdadeira Torre de Babel, muito distante das regras aplicadas antes da formação da Europa Unificada (EU). As maiores ligas da década de 1980, como a italiana, aceitavam três estrangeiros por time, depois “evoluíram” para cinco, sendo três em campo. Com a condição de atletas comunitários e a liberação, na prática, para contratação sem limites, o fator financeiro e as cotas adjuntas de patrocínio tenderam a criar escalações internacionais. Já a liga inglesa – rebatizada como Premier League – acompanhou e ainda acompanha o fluxo de capitais estrangeiros não tributados para o Reino Unido, tornando Londres um dos dois maiores centros financeiros do cassino da especulação do planeta.
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Ao observarmos as chamadas cadeias globais de valor, as redes de abastecimento demonstram sua diversificação e sua presença global. Já o chamado “design estratégico” e o processo de tomada de decisões são bastante concentrados. Para agravar o quadro, boa parte das transnacionais (TNCs) operam com holdings em jurisdições especiais – comumente chamadas de “paraísos fiscais” – e exercem regularmente a evasão tributária, ampliando a desigualdade e concentração de renda em escala mundo. Não por acaso, boa parte dos elencos estelares das equipes profissionais são propriedade de fundos soberanos ou de não residentes, ampliando a roda da especulação e a escalada inflacionária do esporte.
Nacionalidades em disputa
Outra característica conflitante no futebol mundializado é a disputa por nacionalidades. A FIFA surpreende positivamente ao impor uma regra que proíbe atletas a trocarem de seleção após terem defendido uma equipe antes. Este regramento é importante considerando que a Copa do Catar teve 137 jogadores naturalizados, equivalente a 16,46% dos elencos.
Dentre as seleções de “naturalizados”, três chamam a atenção por serem países que compartem o passado colonial e tensões de pertença étnico-culturais na atualidade. A primeira é a atual vice-campeã mundial, a França, que detém em seu currículo dois campeonatos mundiais (1998 na França e 2018 Rússia) e dois vice-campeonatos (2006 na Alemanha e 2022 no Catar). Na Copa da Rússia, a então campeã do mundo contava com 19 jogadores com dupla nacionalidade, especialmente no Marrocos e na Tunísia. Dos 23 convocados, apenas quatro não tinham raízes diretas em outros países.
Este padrão já vinha da defesa futebolística da diversidade, com a seleção de 1998 sendo um padrão multicultural, conhecida como “black, blanc e beur” (negra, branca e árabe). Progressivamente, a herança da Berbéria foi diminuindo e a da Françafrique (termo pejorativo para as relações imperialistas francesas, como no Mali recentemente) passou a aumentar. Na seleção vice-campeã, são 16 jogadores com dupla nacionalidade e cinco apenas com “raízes culturais” plenas do país. O melhor “retrato” do desenvolvimento esportivo moderno e do recrutamento na periferia do país se dá com o craque Kylian Mbappé – nascido no ano do primeiro título mundial, filho de mãe argelina e pai camaronês.
O maior artilheiro francês é Just Fontaine, nascido em Marraquexe, Marrocos. Na Copa de 1958, a França estava em guerra contra a Argélia, país onde o maior craque do país, Zinédine Yazid Zidane (nascido na Marselha multicultural), tem suas raízes. Em 2022, a heroica seleção marroquina tem 14 jogadores nascidos fora do país. Já a Tunísia, com vitória histórica sobre a França na última rodada da fase de grupos, tem 12 jogadores nascidos em outros territórios. O gol marcado contra a equipe dirigida por Didier Deschamps foi convertido por Wahbi Khazri, um craque natural da Córsega (!).
Qualquer analista sério de futebol vai reconhecer que, sem os fluxos migratórios, seria impossível o desenvolvimento de França, Holanda e Inglaterra no mundo desportivo. Ao mesmo tempo, a pertença, a criação familiar e muitas vezes a revolta contra a desigualdade e o racismo da Europa incentivam atletas a jogar por países de sua ancestralidade – além de muitos outros fatores. Em contrapartida, a mundialização eleva o nível atlético, implanta academias de futebol com objetivo no alto rendimento e possibilita mais oportunidades para jogadores em seleções árabes e africanas do que nas tradicionais equipes europeias.
O cinismo pós-colonial permanente
Em 2006, o líder histórico da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, declarou sua torcida pela Itália na final da então edição da Copa do Mundo. Em 1998, disse que preferia uma “equipe nativa” a um elenco “integrado”. A família Le Pen tem como alvo principal o craque francês de origem argelina Karim Benzema, atleta que defende sua origem árabe e explicita no âmbito simbólico o que o Estado e suas elites fazem com ampla dose de cinismo.
Em 2002, Jacques Chirac foi reeleito presidente francês, ao bater no segundo turno o xenófobo e fascista supracitado. Em 2022, Emmanuel Macron conquistou sua reeleição sobre Marine Le Pen, filha de Jean-Marie e herdeira política do Front National. Em tese, gaullistas republicanos e neoliberais são defensores de uma França diversa e não baseada no racismo estrutural e na xenofobia. Contudo, nas decisões de Estado, as periferias seguem de maioria árabe e africana, com altos índices de violência, narcotráfico e abuso policial.
Identificando as “populações perigosas”, foram mobilizados 12.800 agentes de repressão para conter as possíveis celebrações da disputa de 3º e 4º lugar entre Croácia e Marrocos, com vitória dos primeiros. Já para a final entre Argentina e França, mais de 14 mil efetivos policiais estavam em alerta contendo a ira ou a “alegria” nas ruas – que não veio após o triunfo de Messi e companhia. Se a força motriz do mundo industrial europeu era o proletariado, no capitalismo mundializado são as populações marginalizadas no centro do Ocidente.
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