A discriminação e o ódio explícito em relação aos muçulmanos aumentaram a proporções “epidêmicas”, reportou a Organização das Nações Unidas (ONU) ao emitir um alerta para marcar o primeiro aniversário do Dia Internacional de Combate à Islamofobia. Lançado no terceiro aniversário dos ataques nas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia, em que 51 fiéis foram mortos por um terrorista de extrema-direita, a ocasião é observada com um evento especial na Assembleia Geral, onde líderes globais defendem a necessidade de ações concretas diante do aumento do ódio, da discriminação e da violência contra os muçulmanos.
Muitos governos tomaram medidas para combater a islamofobia, estabelecendo legislações contra crimes de ódio. Também foram adotadas medidas para prevenir e processar crimes de ódio e conduzir campanhas de conscientização pública sobre o Islã, projetadas para dissipar mitos e concepções negativas e equivocadas. Ao marcar o primeiro aniversário do Dia Internacional de Combate à Islamofobia, o secretário-geral da ONU, António Guterres, destacou que a intolerância contra os muçulmanos faz parte de uma tendência maior de ressurgimento do etnonacionalismo, do neonazismo, do estigma e do discurso de ódio que visam populações vulneráveis.
O comentário de Guterres enfatizou uma característica crucial do racismo anti-muçulmano que torna a islamofobia mais perniciosa e perigosa do que outras formas de discriminação: o patrocínio estatal. Os anos posteriores aos atentados de 11 de setembro de 2001 são distintos pela maneira como as democracias e as autocracias têm fomentado, instrumentalizado e explorado o medo dos muçulmanos para avançar em sua agenda ideológica. Seja para avançar o tipo de etnonacionalismo estreito mencionado por Guterres ou para justificar medidas de segurança que minam as liberdades fundamentais, o medo e as concepções errôneas sobre o Islã e os muçulmanos são usados para executar e defender violações de direitos humanos promovidos pelo Estado, antes impensáveis.
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Dos uigures de Xinjiang, sob genocídio executado por ações do Partido Comunista Chinês, aos 200 milhões de muçulmanos da Índia, que também enfrentam ameaça de genocídio, segundo o especialista que previu o massacre dos tutsis em Ruanda, ou milhões de palestinos sujeitos a humilhação diária por Israel, a islamofobia patrocinada pelo Estado unifica governos de todos os espectros ideológicos em sua perseguição cultural-religiosa.
Embora China, Índia e Israel estejam no extremo de um fenômeno global notável pelo retrocesso da democracia e o movimento em direção ao autoritarismo, países como Áustria, França e muitos outros não estão muito atrás quando se trata do tratamento depreciativo aos muçulmanos. Em nome da luta contra o terrorismo, princípios democráticos como o tratamento igualitário dos cidadãos sofrem ataques. A suspeita institucionalizada imposta sobre os muçulmanos não apenas aumentou para “proporções epidêmicas”, como observou a ONU, mas também vários estados – bem como órgãos regionais e internacionais – responderam a ameaças de segurança adotando medidas que desproporcionalmente visam os muçulmanos e os definem como alto risco de radicalização. Tais medidas coincidiram com representações generalizadas negativas do Islã e estereótipos que retratam os muçulmanos, suas crenças e cultura como ameaça. Esforços políticos têm servido para perpetuar, validar e normalizar a discriminação, hostilidade e violência contra indivíduos e comunidades muçulmanas, além de teorias conspiratórias odiosas como a “Grande Substituição”, que sustentam ansiedades contemporâneas sobre os muçulmanos.
Como mostra o último Relatório sobre Islamofobia da União Europeia, a política governamental permanece como principal catalisador do preconceito anti-islâmico. Os governos instituíram sua agenda e facilitaram uma série de linguagem e comportamentos que normalizam o racismo de maneiras impensáveis mesmo no auge da chamada “Guerra ao Terror”, após o 11 de setembro.
Quem poderia imaginar que o discurso de “nós e eles”, junto com medidas discriminatórias usadas para justificar a luta do Ocidente contra a Al-Qaeda, se tornaria a inspiração para o presidente chinês Xi Jinping embarcar em uma política genocida em relação aos muçulmanos uigures? De fato, lideranças como Xi Jinping adotaram o modelo “Guerra ao Terror”. Por exemplo, em 2014, durante um ataque da resistência uigur no território autônomo de Xinjiang, a mídia estatal referiu-se aos eventos como o “11 de Setembro da China”. Xi instigou os oficiais chineses a seguir o roteiro americano pós-11 de setembro, desencadeando uma repressão que eventualmente levaria um milhão de uigures a serem jogados em campos de concentração.
Mais perto de casa, na Europa, o aumento da islamofobia é principalmente resultado dos Estados buscando impor sua própria versão do Islã ou tentativas dos governos de criminalizar o ativismo muçulmano. Partidos políticos tanto da direita quanto da esquerda têm sido praticamente indistinguíveis nesse sentido. O racismo anti-muçulmano não só foi normalizado, mas a capacidade de um partido político também disseminar estereótipos racistas sobre os muçulmanos se tornou decisiva para quem vence ou perde uma eleição. Na Hungria, por exemplo, a suposta ameaça de migrantes muçulmanos “inundando” o país e destruindo suas “fundamentações cristãs” continua a moldar o discurso político e tem mantido líderes nacionalistas de extrema-direita como Viktor Orbán, no poder desde 2010.
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Orbán não está sozinho nesse sentido. Comunidades muçulmanas na Europa são estimadas em cerca de 25,8 milhões de pessoas, ou aproximadamente 4,9% da população total da região, mas ainda assim uma narrativa odiosa sobre o Islã dominando o continente e destruindo a civilização ocidental – uma visão que convenientemente ignora a contribuição do Islã e dos muçulmanos para o “Ocidente” – incita grande parte do discurso político, desde Budapeste a Paris e Londres, e cruzando o Atlântico até Washington e além. Como o Partido Conservador do Reino Unido demonstra com sua linguagem odiosa em relação aos refugiados – que chegam principalmente de países de maioria islâmica –, Orbán e seus acólitos de ultradireita não estão sozinhos em explorar o medo irracional e fabricado do terrorismo e dos crimes de violência sexual para difamar os muçulmanos.
Relatórios e opiniões com viéses ideológicos, retratando os muçulmanos como uma ameaça à segurança interna, difundidos por comentaristas reacionários e grupos racistas certamente alimentam a islamofobia, mas o ódio gerado não poderia ser normalizado sem o patrocínio e endosso do governo. É por isso que a Anistia Internacional, em seu relatório de 2022 sobre a islamofobia na Europa, reafirmou: “As autoridades estaduais repetidamente têm como alvo indivíduos e comunidades muçulmanas por meio de uma série de leis de contraterrorismo e segurança nacional excessivas e vagas. Tal direcionamento deliberado e sustentado, incluindo medidas de monitoramento e vigilância tanto ostensivas quanto secretas, cultivou uma suspeita generalizada dos muçulmanos na Europa, que tem fornecido terreno fértil para a contínua erosão de seus direitos humanos, incluindo acesso a educação, emprego, moradia, esporte e com respeito à sua liberdade de expressão, religião, associação e direito à não discriminação”.
À medida que o mundo se compromete a combater a islamofobia hoje, sejamos honestos e reconheçamos que a luta contra o racismo é um concurso entre os valores de tolerância e liberdade – que sustentam nossa sociedade moderna – e os valores de intolerância, ódio e estreiteza de espírito – que buscam reverter o progresso da cultura e da civilização. O mundo passa por uma transformação política única em ao menos um século, na qual a ascensão do autoritarismo é acelerada por meio da demonização dos muçulmanos e da fé de dois bilhões de pessoas no planeta. Não podemos derrotar o etnonacionalismo regressivo, o neonazismo e o discurso de ódio – que visam populações vulneráveis – sem reiterar nosso compromisso em combater a crescente onda de islamofobia.
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