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Em busca de Saeed: de Guantánamo a uma prisão argelina

O caso do desaparecimento de Saeed Bakhouche na Argélia prova que sair de Guantánamo não significa o fim da tortura. Para muitos de nós, é simplesmente o próximo passo para o mesmo destino ou algo pior.
Vestidos com macacões laranja brilhantes, prisioneiros da Al Qaeda e do Talibã se lavam antes das orações do meio-dia no Campo X-Ray, onde estão detidos, na Base Naval dos Estados Unidos na Baía de Guantánamo, Cuba. [O crédito da foto deve ser J. SCOTT APPLEWHITE/AFP via Getty Images]

Saeed Bakhouche – que eu conheço como meu irmão ‘Saeed’, ou prisioneiro 685 – foi o último dos 26 argelinos em Guantánamo. Aqueles de nós libertados antes dele ficaram muito satisfeitos quando soubemos que ele foi finalmente repatriado em 20 de abril para seu país de origem, como um homem inocente.

Mas, em vez de desfrutar da alegria e da paz que o regresso a casa deveria trazer a um homem a quem foram tirados 21 anos de vida familiar, Saeed inacreditavelmente encontrou-se noutra prisão.

Desta vez, ele está em uma prisão fora da capital argelina, enfrentando novos interrogadores, sem representação legal e sem visitas familiares – uma situação pior do que Guantánamo. Já faz um mês.

Saeed foi interrogado e investigado por 21 anos supostamente pelas mais poderosas e eficazes agências policiais e de inteligência do mundo – e mesmo assim ele deixou Guantánamo sem acusação ou julgamento.

O que os argelinos poderiam descobrir depois de todo esse tempo que os americanos não pudessem?

O exagero legal combinado com a falta de responsabilidade até mesmo dos princípios básicos do devido processo tornaram-se um padrão familiar na ‘guerra contra o terror’. Este fato foi reconhecido pela ONU, mesmo que nada possa fazer a respeito.

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Como membro da ONU, a Argélia passou por uma quarta Revisão Periódica pelo Grupo de Trabalho de Revisão Periódica Universal (UPR) do Conselho de Direitos Humanos da ONU em novembro de 2022, mas não aceitou recomendações amplas relacionadas a detenções arbitrárias.

Isso deve ser visto em combinação com a extensão do código penal da Argélia em junho de 2021 para ampliar a definição de “terrorismo” para incluir entre 250 a 1.000 organizações políticas pacíficas e jornalistas.

Não é difícil imaginar como tal legislação trataria um homem de 52 anos libertado de Guantánamo sem acusações.

Não há acusações nem julgamentos contra Saeed. Ele foi inocentado por um Comitê de Revisão Periódica (PRB) após um processo que se assemelharia a uma comédia cruel e decrépita se o impacto não fosse tão terrível na vida de Saeed.

Saeed Bakhouche foi pego em uma caçada pós-11 de setembro EUA-Paquistão em uma casa de hóspedes; ele estava tênuemente ligado a Abu Zubaydah e esses “links” provaram ser falsos após 14 anos de investigação enquanto ele estava detido em Gitmo; e então ele foi acusado de fazer parte de uma “força” não identificada associada à Al-Qaeda, que não foi identificada nem comprovada.

O arquivo militar confidencial de Saeed traz uma foto que supostamente é dele, mas que não é ele. Ninguém sabe quem é o homem da foto, mas esta foto foi exibida fora de sua cela em Guantánamo por 18 meses e mostrada a outros presos durante interrogatórios, incriminando “ele”.

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Uma sucessão de juízes se recusou a reconhecer esses erros óbvios e injustiças profundas, então, em 2018 e 2022, Saeed se juntou a outros prisioneiros ao se recusar a comparecer perante o PRB. Ele foi repatriado à revelia.

Uma casa não tão bem-vinda

Vinte e seis argelinos foram repatriados de Guantánamo. Ao voltarem para casa, o governo argelino não ofereceu nenhum tipo de ajuda ou apoio a esses homens libertados e inocentados.

Em vez disso, eles me disseram que tiveram seus direitos civis (incluindo o direito à proteção legal e ao devido processo legal) revogados por um período de um a três anos.

Além disso, eles devem se reportar semanalmente às autoridades. A qualquer momento, seus movimentos podem ser monitorados e eles podem enfrentar restrições de viagem, sob o que as autoridades dos EUA denominaram, de forma ampla, “compartilhamento contínuo de informações”. Esta é uma situação que significa que eles são incapazes de manter um emprego.

Apesar dessa interação próxima com a autoridade, não houve apoio psicológico, social ou profissional para ajudar esses homens a voltar à vida normal.

Um ex-prisioneiro na Argélia, Sufyian Barhoumi, sofre de PTSD agudo e outros problemas de saúde devido ao seu encarceramento, e se torna um passivo para sua família. Existem muitos desses casos entre nós.

Na Argélia, uma fonte interna disse que os interrogadores de Saeed começaram imediatamente a interrogá-lo sobre os 21 anos que passou em Guantánamo, desde que chegou com fraldas e algemas na Ilha de Cuba, até o dia em que foi libertado 21 anos depois, sem acusações contra ele.  Nunca lhe foi oferecido um advogado. Após dez dias de intenso interrogatório, ele se viu diante de outro juiz em outro tribunal, que decidiria novamente se o libertaria ou o mandaria para a prisão, e tudo isso seria baseado no relatório de seus interrogadores e nenhuma evidência além disso.  A fonte descreveu o juiz como “mal-humorado”. Saeed respondeu a todas as perguntas que lhe foram feitas pelo juiz, mas não admitiu as acusações nos autos – nem aos seus interrogadores e nem ao juiz.

Os supervisores militares de Saeed em Guantánamo o descreveram oficialmente como “tranquilo” com um “desejo de seguir um estilo de vida pacífico”. Quando ele não admitiu as acusações, o juiz disse a ele: “Você será destituído de todos os seus direitos civis”. Ao que Saeed respondeu: “Então me mande de volta para Guantánamo.” Foi a última vez que ouvimos falar dele. Sabemos apenas que ele foi enviado para uma nova prisão, com novos interrogadores.

Qual é o acordo dos EUA com a Argélia? 

O governo dos EUA pagou generosamente ao governo argelino. Mas nada desse dinheiro acabou ajudando os homens na Argélia a reconstruir suas vidas. Então, a pergunta que fazemos é: que tipo de acordo o Departamento de Estado dos EUA fez com o governo argelino?

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Saeed está enfrentando acusações de “envolver-se no exterior em uma organização terrorista e subversiva” sendo que já foi inocentado de tais atividades pelos EUA e passou os últimos 21 anos na prisão. Essa situação por si só torna essas acusaões impossíveis em primeiro lugar. Foram feitas contra ele não pelo governo ou tribunais, mas pela Segurança Militar, um aparato que responde apenas aos militares. Essa hierarquia institucional liderada por militares na Argélia foi desenvolvida e fortalecida desde 2015 e concede impunidade legal à Segurança Militar.

Isso deve ser visto no contexto da lealdade da Argélia aos EUA no combate ao terrorismo. Já em 2006, a Anistia Internacional informou que esta lealdade tinha precipitado medidas antiterroristas que facilitavam a tortura e a detenção arbitrária pela Segurança Militar. Além disso, as recentes extensões de junho de 2021 na legislação antiterrorista significam que a Segurança Militar recebeu mais privilégios para prender indivíduos, embora ainda permaneça inexplicável.

Os EUA não estão alheios a esses desenvolvimentos. Em março, o Departamento de Estado reiterou o apoio ativo de Washington às forças armadas argelinas, dizendo que “os engajamentos entre militares dos EUA e da Argélia desenvolverão ainda mais a capacidade e a profissionalização das forças de segurança argelinas”.

Os EUA não estão responsabilizando os países anfitriões 

No papel, nas relações públicas e por advogados e Conselhos de Liberdade Condicional, somos informados de que os argelinos garantiram aos EUA que cumpririam suas responsabilidades legais e de direitos humanos com ex-prisioneiros de Guantánamo. Essas “garantias” são registradas em conexão com as primeiras transferências. Mas e quanto a homens como Saeed? E quanto a outros como ele? Quanto Washington realmente sabe sobre onde ele está e o que está acontecendo conosco? O Departamento de Estado dos EUA tem um histórico ruim na localização de ex-prisioneiros de Guantánamo que foram maltratados, torturados e presos, apesar dos acordos de que seriam reassentados pacificamente.

Sabri Al-Qurashi no Cazaquistão, investigado pelo Intercept, foi solto no Cazaquistão em 2014, onde não tem status legal nem  identidade e sua família não tem permissão para visitá-lo, tornando impossível encontrar um emprego e tornando-o um fantasma na sociedade. Ravil Mingazov, que está preso nos Emirados Árabes Unidos há seis anos, não teve acesso a advogados ou familiares, e não ouvimos nada dele em dois anos. Homens que estiveram com ele na prisão nos disseram que a tortura que sofreu foi pior do que em Guantánamo. O Departamento de Estado está ciente desses e de outros casos, mas opta por não intervir. Exigimos a libertação imediata de Saeed. Guantánamo não nos deixou e nós não saímos de Guantánamo. Continuamos pacientemente na esperança do sucesso que está por vir

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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