Portuguese / English

Middle East Near You

Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

George Orwell e a Rússia

Autor do livro(s) :Masha Karp
Data de publicação :Maio de 2023
Editora :Bloomsbury
Número de páginas do Livro :312 páginas páginas
ISBN-13 :9781788317153

O século XX não teve autor mais prolífico em sua análise sobre os perigos do autoritarismo do que Eric Arthur Blair, mais conhecido por seu pseudônimo, George Orwell. Os escritos de Orwell continuam a nos impactar até os dias de hoje. Sua obra parece ter uma ressonância particular na atual conjuntura russa, como Masha Karp explora em seu livro, publicado em maio – George Orwell and Russia (Editora Bloomsbury).

Ao refletir sobre a relevância da literatura no contexto contemporâneo de Vladimir Putin e da guerra na Ucrânia, comenta Karp: “Já em 1942, Orwell buscava maneiras de impedir que o mundo caísse em um pesadelo totalitário, onde não existe verdade objetiva e o ‘líder’ tem poderes para controlar o passado, o presente e o futuro”.

Orwell aponta duas coisas que autocratas da era pós-verdade e todos os interessados devem se lembrar. A primeira é que a verdade existe no mundo, mesmo que você não veja, e toda e qualquer negativa não significa capacidade de subvertê-la ou subjugá-la. Segundo, enquanto houver resistência, enquanto partes do globo se mantiverem livres da autocracia, a tradição libertária continuará viva. Algo notável na literatura de Orwell, observa Karp, é como muitos russos se questionam como um homem que jamais visitou o país poderia descrevê-lo com tamanha precisão? Essa é justamente a pergunta que Karp se encarrega de responder.

A virada antiautoritária de Orwell e suas denúncias da União Soviética se basearam em sua experiência na Guerra Civil Espanhola de 1936 a 1939. Orwell recebeu influências de ideais de esquerda e, após a depressão econômica da década de 1930, passou a crer que se afastar do capitalismo rumo à coletivização seria inevitável. No entanto, sua simpatia ao socialismo e ao anarquismo não vieram sem críticas aos movimentos de esquerda no Reino Unido e sua contundência e independência lhe coroaram com olhares desconfiados.

Quando eclodiu o violento conflito na Espanha, Orwell quis testemunhar os fatos com seus próprios olhos. Como muitos outros, ouviu falar da ascensão de um socialismo radical e da luta contra os fascistas. Não obstante, viajar à Espanha naquela época não era nada fácil e foi preciso uma carta de recomendação que Orwell conseguiu com enorme esforço, após sucessivos apelos ao Partido Comunista Britânico. Sua mentalidade crítica e sua recusa em jurar aliança ao núcleo partidário fez os comunistas desconfiarem de Orwell e lhe negarem ajuda. Eventualmente, outro grupo de esquerda decidiu apoiá-lo, com a condição de que ele se juntaria a suas fileiras paramilitares em Barcelona – Orwell consentiu. Ao chegar à cidade, sob gestão dos anarquistas, Orwell ficou tremendamente fascinado. “A euforia que sentiu ao chegar permaneceu com ele pelo resto da vida … Ele estava animado com as mudanças”. Porém, ver em primeira mão o autoritarismo de certas facções de esquerda e a brutalidade da União Soviética em solo espanhol consolidou Orwell como um crítico voraz do regime em Moscou.

Ao retornar ao Reino Unido para escrever sobre o que testemunhou, Orwell se deparou com um grave problema bastante comum a muitos autores e pesquisadores ainda hoje. Críticos do experimento soviético sofriam ataques veementes e, durante a Segunda Guerra Mundial, suas análises sobre a Rússia eram algo que ninguém queria ouvir.

Em 1944, Orwell começou a escrever seu novo romance, A Revolução dos Bichos (no original em inglês, Animal Farm). Embora o processo de escrita tenha demorado apenas três meses, Orwell levou quase um ano para conseguir imprimi-lo. A indisposição do mercado editorial em publicar um livro crítico à União Soviética possuía raízes profundas em um sentimento de afeto ao Kremlin, tanto no público geral quanto nos corredores da academia.  Para o público, foi a União Soviética que lhes resgatou do nazismo e a propaganda moscovita certamente os impactou. “Fredric Warburg, que eventualmente editou A Revolução dos Bichos – e usufruiu de seu sucesso – revelou anos mais tarde que sua própria esposa o ameaçou com o divórcio caso publicasse a sátira orwelliana, pois ela não poderia suportar ingratidão em relação aos russos”.

Vivemos em tempos distintos; entretanto, ecos do mito russo-soviético chegam até nós. Até a invasão da Ucrânia – e mesmo depois – muitos no Ocidente se recusavam a acreditar que a Rússia voltava a desabar ao totalitarismo sob Vladimir Putin, ao abraçarem calorosamente oligarcas ao seu redor. Quem ressoava o alarme seria ostracizado e mesmo um segmento da esquerda anti-imperialista insistiu em defender as atrocidades perpetradas por Moscou em lugares como a Síria, regiões da África e outras partes do mundo.

O livro de Masha Karp é, portanto, uma interpretação fascinante de um conjunto de obras ainda muito relevantes. Ao explorar o passado, com um olho no presente e outro no futuro, Karp revela as raízes da importância de Orwell – autor que capturou com destreza a própria mentalidade daqueles que vivem sob o autoritarismo. Karp, por sua vez, recorre às reflexões de Orwell para tentar compreender o mundo atual.

Orwell não era nenhum gênio acadêmico de plena formação – era um homem comum com um olhar extraordinário. Sua obra mostra a metamorfose do autor de um romântico ingênuo a alguém que, confrontado com a realidade, prefere ser honesto sobre o que vê. Ler George Orwell and Russia dá uma nova perspectiva sobre a literatura de um autor conhecido desde a formação educacional à vida adulta, além de uma compreensão sobre o que Orwell passou para chegar onde chegou.

Resenha: Para onde foram os meninos e meninas de Karine Garcez?

Categorias
Europa & RússiaResenhasResenhas - Livros & DocumentosRússia
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments