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O Califa e o Imã: A criação do sunismo e xiismo

Autor do livro(s) :Toby Matthiesen
Data de publicação :Março de 2023
Editora :Universidade de Oxford
Número de páginas do Livro :960 páginas
ISBN-13 :978-0190689469

The Caliph and the Imam: The Making of Sunnism and Shiism – em tradução livre, O Califa e o Imã: A criação do sunismo e xiismo – de Toby Matthiesen é um estudo amplo e excepcional que atravessa séculos e continentes, ao mergulhar na complexa evolução dos dois maiores ramos do Islã. Esta obra acadêmica examina meticulosamente o desenvolvimento histórico e a transformação das escolas de pensamento sunita e xiita, ao oferecer valiosas observações sobre suas origens e influências ao longo de diferentes períodos e localidades.

Embora o tema do sectarismo no Islã não seja uma novidade, a contribuição de Matthiesen se distingue de outros materiais por meio de seu escopo e sua extensa cobertura. Diferente de outras obras que analisam velhas narrativas – embora fundamentais – dos cismas antigos sobre sucessão, o autor respeitosamente restringe suas explicações às primeiras páginas, em vez de assumir como foco as nuances que dão forma às trajetórias distintas do sunismo e do xiismo. Contudo, Matthiesen observa que o período formativo de ambas as ramificações é crucial não apenas para encontrar as raízes do cisma teopolítico como porque os impérios islâmicos subsequentes, assim como Estados e movimentos, “buscaram legitimar suas ações ao referenciá-lo”.

A maior distinção entre The Caliph and the Imam e outros trabalhos sobre o assunto repousa no fato de que o autor decide ir além do enfoque exclusivista convencional sobre o Oriente Médio, como terra nativa do sectarismo entre sunitas e xiitas. “Pois é através desse alcance temporal e geográfico que ambos deram forma um ao outro”. Matthiesen expande a análise para abranger regiões remotas, incluindo o subcontinente indiano no sul da Ásia.

Tamanha atenção à região se torna particularmente relevante ao considerarmos que a Índia e o Paquistão constituem juntos a maior população sunita do mundo, com presença análoga de xiitas no Irã. Ao se aventurar bem distante das fronteiras tradicionais, o autor traz à luz as dinâmicas do sectarismo em uma região muitas vezes ignorada por seus pares, conferindo assim um ponto de vista intrigante e inovador. Por exemplo, descobrimos o caso dos mogóis, “cuja ordem sufita à qual se aliaram incorreu em consequências importantes nas relações sunitas-xiitas” e cujo fundador da dinastia, Babur, buscou ajuda dos safávidas xiitas da Pérsia logo em suas primeiras campanhas.

Na semana passada, durante um evento de lançamento de seu livro na Fundação al-Khoei de Londres, Matthiesen compartilhou com o MEMO suas motivações para redigir sua pesquisa, incluindo a abundância de literatura existente. “Comecei a trabalhar neste livro em 2015. De fato, tive um pouco de sorte em algum ponto, em parte porque eu não queria fazer o que já havia sido feito antes … Senti que havia muitas pessoas com fortes opiniões formadas sobre o assunto. Os relatos mais populares sobre o tema são, na verdade, bastante existencialistas, bastante confusos ou equivocados e concentrados sobretudo no conflito”.

Com seu enfoque na história política do cisma entre sunitas e xiitas, é possível enxergarmos alguns paralelos com uma publicação anterior, intitulada Sunnis and Shi’a: A Political History Sunitas e xiitas: Uma história política –, da estimada pesquisadora Laurence Louer. Todavia, embora a obra de Louer cobre assuntos semelhantes dos fluxos e refluxos das relações entre as partes, marcados por cooperação e conflito, sua análise pode ser considerada um pouco mais restrita, dado que o faz por meio de estudos de caso de nações individuais.

Em contraste, a obra de Matthiesen proporciona uma perspectiva mais ampla abrangendo períodos históricos e mudanças tectônicas geopolíticas. Seu estudo mergulha nos principais marcos e pontos de inflexão do tema, como a era da “ambiguidade confessional”, que dá à luz duas dinastias rivais – otomanos e safávidas –, cujas ações são profundamente influentes tanto no assunto quanto na história global.

Em sua entrevista ao MEMO, no entanto, Matthiesen reconheceu a importância da pesquisa de Louer – “uma grande pesquisadora, admiro seu trabalho”. Então acrescentou: “Seu novo livro foi publicado enquanto eu escrevia o meu. Em geral, é sobre o mesmo assunto. Porém, ambos os livros são muito diferentes. A obra de Louer se concentra em diversos estudos de caso, em uma série de países, com destaque para a era moderna”.

Então, há a muito mais recente Primavera Árabe e seus consequentes conflitos geopolíticos. No decorrer do livro, ao se aproximar do final, o leitor certamente adquire a impressão de que se trata de um estudo deveras contemporâneo, com eventos que se desenrolam quase em tempo real. Afirmou Matthiesen: “Mesmo algo incapaz de discriminação, como um vírus respiratório ganha um caráter sectarizado”, dada a maneira como muitos peregrinos xiitas foram tratados como “super-disseminadores” do covid-19 após visitar seus santuários nos primeiros meses da pandemia.

Tendo em mente que o livro foi publicado em março de 2023, mesmo mês em que Arábia Saudita e Irã normalizaram relações – passo monumental tanto em termos políticos quanto sectários, diante de rivalidades históricas do Oriente Médio –, tenho esperanças de ver uma edição atualizada mais adiante, que possa abordar, por exemplo, o impacto da readmissão da Síria à Liga Árabe e o eventual reconhecimento do governo houthi no Iêmen.

Particularmente intrigante é a menção de Matthiesen às repercussões da mídia impressa nas sucessivas polêmicas, o que “levou a um Islã mais escrituralista, no qual fronteiras sectárias são mais rígidas”. A alusão me fez ponderar sobre como este fenômeno é exacerbado pelas controvérsias descomunais e francamente tóxicas do mundo digital e a maneira como essas identidades sectárias se solidificaram em escala-mundo nas redes sociais.

Matthiesen concorda: “A internet levou à publicação em massa de conteúdos sectários que são justamente aqueles que costumam se difundir mais. Isso se refere também ao fator de engajamento das redes sociais … o que definitivamente endureceu o caráter das identidades sectárias”. Em seguida, corrobora: “A importância de uma mudança estrutural na imprensa é um subtema importante do livro”.

Embora The Caliph and the Imam toque brevemente no assunto do sectarismo no Ocidente, em particular, na propagação salafita entre a diáspora islâmica e a conversão à fé, poderia ser interessante explorarmos o tópico em mais detalhes, sobretudo após a controvérsia do último ano sobre o filme Lady of Heaven – sobre a vida da filha do Profeta. Questões como essa, quem sabe, poderiam servir de matéria relevante para o debate e enfatizar o escopo universal do livro.

Não obstante, apesar de – a meu ver – uma oportunidade perdida, a presença extensa de notas remissivas e bibliográficas que abrangem quase metade da obra demonstra a escala da pesquisa e da análise subsequente. Com um enfoque dedicado a um assunto que associa aspectos políticos e teológicos, e que transcende fronteiras, a obra efetivamente demonstra a natureza global da matéria em mãos.

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