O racismo vai além do uso de certas palavras ou discriminação na vida cotidiana. É também sobre percepções políticas, representações intelectuais e relações coletivas.
Considere, por exemplo, a maneira como a África está sendo retratada atualmente nas notícias. Do ponto de vista político, a África é vista como uma entidade singular, mas não de forma positiva, como um continente unido.
A cobertura da grande mídia ocidental da Cúpula EUA-África realizada em Washington em dezembro passado apresentou toda a África como pobre e desesperada. O continente, deduzimos pelas manchetes, estava disposto a penhorar sua posição política no conflito Rússia-OTAN em troca de dinheiro e comida.
“Biden diz aos líderes africanos que os EUA estão ‘all in’ no continente”, anunciou uma manchete da Associated Press em 15 de dezembro. A frase “all in” é usada no pôquer quando alguém está disposto a arriscar tudo; foi citado muitas vezes nos Estados Unidos e na mídia ocidental.
O presidente dos EUA ofereceu o compromisso incondicional de Washington “para apoiar todos os aspectos do crescimento da África”, informou a AP. Mas o “crescimento” teve pouco a ver com as ofertas de Biden. Ele apenas tentou superar o apoio da Rússia à África para que esta adotasse uma postura anti-Moscou. Ele falhou.
Quando uma Cúpula Rússia-África ocorreu em 27-28 de julho, a mídia EUA-Ocidente atacou, apresentando os africanos como vagabundos políticos mais uma vez, enquanto menosprezava o valor estratégico de tal encontro tanto para a Rússia quanto para os países africanos. Uma manchete da CNN começou com “Putin isolado…”, enquanto uma manchete da Reuters dizia “Putin promete aos líderes africanos grãos grátis”.
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Muito pouca menção foi feita aos líderes africanos gastando muito tempo discutindo um possível papel na busca de uma solução pacífica para a terrível guerra em curso na Ucrânia. De fato, vários deles articularam um discurso político sincero, rejeitando o imperialismo, o neocolonialismo e as intervenções militares.
Além disso, houve pouca discussão na mídia de que a África, como a Europa, tem o direito de negociar uma posição política mais forte nos assuntos mundiais. Em vez disso, a cobertura parecia centrada na Iniciativa dos Grãos do Mar Negro negociada em julho do ano passado, insinuando que a Rússia está ameaçando a segurança alimentar em um continente já empobrecido.
Isso, no entanto, dificilmente era o caso. Em um discurso no Fórum Econômico em Vladivostok em setembro passado, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que, dos 87 navios carregados de grãos, apenas 60.000 toneladas de dois milhões chegaram ao Programa Mundial de Alimentos da ONU. Embora os números gerais de Putin tenham sido contestados, o Centro Conjunto de Coordenação da ONU (JCC) disse em um comunicado publicado pela Euronews que “Putin está correto ao dizer que apenas uma pequena quantidade foi enviada sob o Programa Mundial de Alimentos”.
Embora os países ocidentais tenham sido os maiores destinatários de grãos enviados pelo Mar Negro, nenhuma grande mídia assumiu a missão de retratar os europeus como populações famintas ou pior. A Europa dificilmente é apresentada como gananciosa. De fato, a culpa nunca é atribuída à Europa e seu colonialismo, armas e intromissão política. O dedo da culpa é sempre prontamente apontado para outro lugar.
Esta manchete no The Conversation é uma boa ilustração: “Putin oferece brindes pouco convincentes em uma tentativa desesperada de compensar a morte do acordo de grãos com a Ucrânia”. Tal preconceito é surpreendente.
A verdade é que os líderes africanos não procuravam “brindes”, mas esperavam negociar uma posição geopolítica mais forte num mapa político global em vasta mudança. Assim como todo mundo.
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Se a “oferta” de Putin na África foi “desesperada” ou não, pouco importa. O viés, no entanto, fica claro quando o suposto desespero russo é comparado com o resultado da cúpula EUA-África do ano passado. A “oferta” de Biden foi apresentada como uma tentativa de construir pontes e criar oportunidades para cooperação futura. Tudo, claro, em nome da democracia e dos direitos humanos.
A deturpação da África também pode ser vista independentemente da guerra Rússia-Ucrânia. Veja, por exemplo, a maneira como a mídia ocidental lidou com o golpe militar no Níger no mês passado.
O Níger é um dos países do Sahel na África, nações que foram todas colonizadas pela França. Décadas depois desses países conquistaram a independência nominal, Paris continuou a exercer forte influência política e controle econômico. Isso é chamado de neocolonialismo e garante que a riqueza mineral das ex-colônias continue a ser explorada pelos ex-estados coloniais.
É fato que a riqueza de minério de urânio do Níger ajudou a abastecer mais de um quarto das usinas nucleares da UE e muitas delas na França.
Há uma década, a França voltou à região do Sahel como uma força militar, em nome da luta contra os jihadistas. No entanto, a violência piorou, forçando os países africanos do Sahel a se rebelarem, começando pela República Centro-Africana, depois Burkina Faso, Mali, Chade e agora o Níger.
Pouco desse contexto aparece na cobertura do golpe pela mídia ocidental. Em vez disso, como Mali e os outros, o Níger é retratado como outro lacaio russo na África.
Daí a manchete da CNN de 2 de agosto: “Um líder golpista do Níger se reúne com a junta aliada de Wagner no Mali”. A emissora não deixa espaço para a possibilidade de que os líderes africanos possam ter agendas ou vontade política próprias.
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A relação problemática do Ocidente com a África é complexa, enraizada no colonialismo, na exploração econômica e no racismo absoluto. Os africanos são bons “aliados” quando seguem a linha ocidental, e regimes famintos, facilmente manipuláveis, e ilegítimos quando rejeitam as condições que lhes são impostas pelo Ocidente.
É hora de repensar e confrontar essa percepção humilhante. A África, como todos os outros espaços políticos, é uma região complicada e conflituosa, merecendo profunda compreensão e apreciação, além das agendas egoístas de alguns países ocidentais neocoloniais.
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